Após mais de cinco meses do início da campanha salarial de jornais e revistas da capital, as empresas ainda se mostram inflexíveis diante das reivindicações dos jornalistas, que lutam pela reposição das perdas inflacionárias do período — de 8,9%. Diante disso, uma carta da redação dos jornais Valor Econômico e O Globo e das revistas da Editora Globo reforça a luta contra o arrocho dos salários.
Na carta, os jornalistas recordam os apelos feitos pela direção da empresa com a nova realidade da pandemia, e das diferentes mensagens que reforçavam a importância do jornalismo durante essa cobertura histórica. Alertam ainda sobre os gastos extras e a dificuldade em conciliar num mesmo ambiente físico o trabalho profissional com as tarefas da casa. E, para piorar, tudo no cenário de gravíssima crise inflacionária que corrói os cada vez mais defasados salários dos trabalhadores.
A carta dos jornalistas foi encaminhada espontaneamente ao Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo, que a entregou para a direção jurídica e à gerência de RH da empresa, conforme decisão dos profissionais da redação. Assim como também decidiram pela divulgação de seu conteúdo no site e redes sociais do Sindicato. Diante disso, portanto, fica a pergunta:
Por que a Editora Globo quer empobrecer seus jornalistas?
Carta endossada por mais de 60 jornalistas dos jornais Valor Econômico e O Globo (sucursal São Paulo) e de diversas revistas da casa à direção da Editora Globo e do Grupo Globo (leia a íntegra a seguir):
Em abril de 2020, naquele que talvez tenha sido o período de maior incerteza em relação à pandemia que começava a se agigantar, a Editora Globo fez um apelo aos seus repórteres, editores, diagramadores, fotógrafos e demais funcionários. Preocupada com a saúde financeira de seus veículos, os jornais O Globo e Valor Econômico e as diversas revistas da casa pediram que aderissem às regras de uma medida provisória que implicava em redução de 25% dos salários pelo período de três meses em troca de uma garantia de estabilidade por mais três.
As dúvidas em relação à covid-19, a adaptação forçada às inéditas medidas de isolamento e o estado de insegurança econômica em relação ao futuro não eram questões que afetavam apenas as empresas. Impactavam e angustiavam igualmente as famílias de todos os tipos. E com maior intensidade, os que dependem do salário para sobreviver, os que tinham planos, os que sustentavam e ainda sustentam filhos, pais, avós.
Foi naquela hora mais crítica que, sensível aos argumentos da Editora, a maioria dos jornalistas da casa aceitou atender ao pedido de socorro corporativo. Depois de decisão coletiva aprovada em assembleia, praticamente todos os funcionários das diferentes redações assinaram os termos em que cada um abria mão de um quarto da remuneração em nome da manutenção da saúde financeira da empresa.
Não tem sido fácil exercer o jornalismo na atual conjuntura.
Ainda em decorrência da pandemia, repórteres, editores, diagramadores e demais funcionários trabalham de casa há mais de um ano e meio em condições precarizadas. Além dos gastos de adaptação, como reforma de cômodos e compra de materiais de escritório, transformaram equipamentos domésticos em ferramentas de trabalho, como computadores particulares e celulares. E passaram a bancar parte relevante dos custos fixos de produção dos jornais e das revistas sem qualquer tipo de reembolso ou compensação.
Para 100% desses funcionários, a adaptação ao modelo home office implicou em aumento do consumo individual de energia, cuja tarifa acaba de sofrer nova e agora brutal elevação. Aumento também de gastos domésticos diversos, como limpeza, manutenção e consumo de água. E para boa parte deles, ampliação do plano residencial de conexão à internet.
Tem sido essa gambiarra corporativa que, aliada ao compromisso profissional de cada um, vem garantido a manutenção da prestação do serviço: as edições impressas dos jornais entregues diariamente na porta de seus assinantes nas primeiras horas da manhã, os sites dos diferentes títulos remodelados ao ritmo do noticiário e o Valor PRO atualizado em tempo real 24 horas por dia.
Fora do ambiente doméstico transformado em sala de trabalho, a situação dos jornalistas não é menos desconfortável. Nas ruas e nas redes sociais são alvos preferenciais de sistemáticas campanhas de ódio, boa parte disso incentivado e alimentado pelo próprio presidente da República e sua hoste de seguidores fanáticos.
São ameaças reais e simbólicas de toda espécie. Difamação, xingamento, sucessivas tentativas de deslegitimação profissional, abordagens invasivas, exposição de dados pessoais e até agressões físicas. Sem precedentes na história do jornalismo brasileiro, o nível de assédio vai de empresário-celebridade que, contrariado com perguntas incômodas, divulga o telefone particular de repórter aos seus milhares de seguidores à exposição pública de nomes de filhos de jornalistas por parte de perfis anônimos.
O Grupo Globo, que como instituição também é vítima disso, procura mostrar publicamente que não parece indiferente aos ataques. Poucos meses atrás, convidou profissionais da casa para participarem voluntariamente de uma campanha publicitária televisiva que buscava despertar a empatia à figura do jornalista que, empurrado pelas circunstâncias, passou a trabalhar de casa.
Os filmes traziam imagens e depoimentos de repórteres que relatavam os desafios de produzir a melhor informação enquanto cuidavam dos afazeres domésticos, zelavam pela saúde coletiva e auxiliavam filhos pequenos, entre outras tarefas.
O esforço produziu resultado.
Em 9 de agosto, comunicado interno distribuído pela Editora Globo informou que, mesmo em meio à pandemia, a empresa superou as metas financeiras estabelecidas para o primeiro semestre.
O texto celebrava o alcance de uma receita líquida 7% acima do orçado, o que representa crescimento de 2% na comparação com o mesmo período do ano passado. Registrava ainda o fechamento do período com receita acima da meta.
“Sob o ponto de vista de caixa, viabilizamos a construção de um cenário saudável, o que dá mais tranquilidade para planejar o futuro”, dizia a mensagem de “boa performance nos resultados”. Na publicidade, “todas as plataformas operaram acima do orçado e com crescimento de 21% em relação ao ano passado”, patamar classificado como “excelente”.
Mais adiante, o comunicado dizia que “o bom desempenho está bastante ligado aos resultados do Valor Econômico (32% acima do orçado e 45% acima do ano anterior) e das revistas”. O jornal O Globo foi mencionado por ter assumido a liderança em assinaturas entre os jornais brasileiros, segundo medição do IVC.
“Encerramos o primeiro semestre do ano bem acima da nossa meta”, dizia. “A mesma disciplina, paixão e criatividade que nos trouxeram até aqui serão fundamentais para mantermos este patamar de crescimento”, concluía a mensagem.
O desempenho certamente produzirá reflexos positivos nos bônus de executivos da Editora Globo.
Depois de anos seguidos de dificuldades e limitações e, em especial, de um período pandêmico ainda presente e extremamente severo, seria razoável esperar que os bons resultados financeiros alcançados pela empresa também fossem compartilhados com os jornalistas da casa.
Como ocorre nas empresas capitalistas modernas. Como naturalmente ocorre nas que não possuem consciência limitada de seu papel na sociedade. Como ocorre nas que têm interesse genuíno em envolver seus colaboradores em suas missões, na busca de rentabilidade, competitividade e, no caso particular, audiência.
O que era para ser motivo de comemoração por todos os jornalistas da Editora Globo, porém, logo virou elemento de estupefação.
Na negociação de um acordo coletivo para balizar as relações de trabalho para o próximo período, jornalistas representados pelo Sindicato dos Jornalistas de São Paulo propomos trivial reposição da inflação acumulada de 8,9% (INPC) mais aumento real de 3%. O bom momento vivido pela empresa oferece oportunidade positiva para isso. Com o atraso da negociação em relação à data base, nada mais natural que o pagamento retroativo das perdas do período, como tradicionalmente sempre ocorreu no nosso meio.
Para espanto geral, o comportamento dos que fazem a representação da empresa no âmbito dessa negociação tem sido o oposto disso. A mesma Editora que celebrou o “excelente” resultado financeiro do período recente tem mostrado soberba insensibilidade na negociação de um acordo razoável para aqueles que são chamados à “disciplina, paixão e criatividade”.
Em face da inflação de 8,9% — mas que acabou sendo muito maior para quem paga aluguel, por exemplo, e sofreu reajustes corrigidos pelo IGP-M –, a Editora Globo e o restante das empresas ofereceram um defasado ajuste 4,45% para quem ganha até R$ 10 mil e algo proporcionalmente ainda menor para os demais salários, o valor fixo de R$ 445,00.
Há recusa em discutir o pagamento retroativo de perdas passadas. Com o passar dos meses, a inflação acumulada que impõe perdas aos jornalistas já passou de 10%. Dias atrás, a contraproposta da Editora Globo e demais empresas oscilou para 5% para quem ganha até R$ 10 mil e R$ 500,00 para os demais. Sem o pagamento retroativo, trata-se de uma mera atualização da oferta inicial.
Oclusa e hostil, a insistência da Editora Globo e demais empresas em reajuste abaixo do índice de inflação nas atuais circunstâncias produz desânimo e perplexidade.
Quatro perguntas:
Se a empresa recebeu resposta positiva de seus funcionários ao pedir redução temporária de salários nas horas mais incertas da pandemia e se o sacrifício de jornalistas profissionais é usado como bandeira para campanha institucional do Grupo Globo, qual é a justificativa para tamanha ferocidade no tratamento econômico?
Se os resultados da Editora Globo são notadamente positivos, qual é a lógica de oferecer arrocho salarial como “prêmio” pelo atingimento de metas?
Tirar proveito do momento de fragilidade social dos jornalistas para aviltar as condições econômicas dos próprios colaboradores é uma postura que se coaduna com os valores defendidos pelo Grupo Globo?
Por que empobrecer os jornalistas?
O SJSP precisa de você!
Para que o Sindicato dos Jornalistas de SP continue a desenvolver o seu trabalho em defesa dos interesses da categoria, é fundamental a participação de tod@s na construção e no fortalecimento da entidade. Sindicalize-se! A mensalidade é de 1% do salário (com teto de R$ 60 na capital e de R$ 38 no interior) ou de R$ 60 e R$ 38 fixos (capital e interior) para quem não tem vínculo empregatício. O processo de sindicalização é online. https://sjsp.org.br/pagina/seja-um-associado