Foi itinerante, entre cidades, levado pela correnteza incartografável de um rio, que Ernesto “Che” Guevara nasceu há 90 anos. Ainda em deslocamento ininterrupto e com desprezo absoluto pelas fronteiras, Che viveu os 39 anos seguintes, fosse sobre a cinematográfica motocicleta La Poderosa II, com a qual percorreu paisagens e vivências latino-americanas; à bordo do Granma, embarcação que devolveu a Cuba seus filhos exilados que fariam a Revolução; ou caminhando de vila a vila, na última campanha que faria antes de ser assassinado, na Bolívia.
A natureza errante do Che – médico, jornalista, escritor, diplomata e líder revolucionário – estava em perfeita sintonia com os valores e teorias internacionalistas que permeiam suas principais contribuições para a esquerda. Contribuições essas que, justamente por serem tão pautadas em experiências reais, foram ofuscadas, com o tempo e verniz próprio dos mártires, pela imagem única de guerrilheiro. Para muitos, no entanto, a prática intransigente do internacionalismo por parte de Guevara é exatamente o que torna seu legado filosófico tão sólido.
Neste aniversário póstumo, O Brasil de Fato entrou em contato com pesquisadores, militantes e jornalistas que estudam a história de Che Guevara para resgatar e entender seu pensamento e os conceitos que guiaram sua prática revolucionária. Para uma dessas entrevistadas, a historiadora Cláudia Furiati, há uma aspiração histórica das elites de apagar a contribuição teórica do Che.
“Todos os escritos de Che, artigos, memórias, diários, foram publicados. Minha geração sofreu um bloqueio desse conhecimento, conhecemos pouco, porque criaram vários obstáculos para que esse esse legado não fosse divulgado. Ele foi um teórico, um formulador da libertação do terceiro mundo, através de uma visão muito testemunhal, porque ele criou conceitos e concepções a partir de uma vivência”, explica a historiadora.
Furiati é autora da única biografia consentida do líder cubano e companheiro revolucionário de Che, Fidel Castro. Após viver cinco anos em Havana para realizar essa pesquisa, a historiadora conta que entendeu o tamanho da importância desse processo revolucionário para além dos limites da ilha caribenha.
“É impossível você contar a história da libertação e emancipação do terceiro mundo sem contar o episódio do cruzamento desses dois personagens e histórias, Fidel e Che Guevara. Por essa razão, Che se transforma em um grande embaixador do Fidel para o terceiro mundo depois da vitória da revolução. Che é o chanceler verdadeiro de Fidel para a costura com os movimentos de libertação da América Latina, África e Ásia”, explicou Cláudia.
A aproximação profunda e quase instantânea entre Che e os guerrilheiros cubanos exemplifica essa característica. Argentino na certidão de nascimento, Guevara conheceu os revolucionários que lutavam para derrubar o regime do ditador cubano Fulgêncio Batista enquanto trabalhava como repórter fotográfico no México, em 1954, após cobrir o golpe que derrubou o presidente da Guatemala, Albenz Guzmán.
Socialistas, comunistas e anarquistas de todo o mundo haviam se somado à luta dos guerrilheiros guatemaltecos em defesa da reforma agrária radical proposta pelo presidente e rechaçada por poderosas multinacionais. Esses mesmos guerrilheiros apresentaram Che a Raul Castro, que eventualmente o levou a Fidel. A essa altura, Guevara já havia estabelecido que sua causa era a libertação dos povos em âmbito global.
“Para o Che, o internacionalismo significava sentir-se solidário com todo sofrimento dos explorados e oprimidos no mundo, e com toda luta emancipatória em qualquer pais que seja. Mas se tratava para ele de uma solidariedade ativa, concreta, revolucionária. Sua visão da luta pelo socialismo em Cuba e na América Latina era inseparável de uma visão do combate internacional contra o imperialismo e o sistema capitalista”, explica afirma o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique, em Paris.
Quatro anos depois, no Reveillon de 1959, a revolução cubana triunfou, e, após a instalação de um governo comunista, Che passou os anos seguintes estudando e elaborando um novo projeto de sociedade. Antes de se tornar embaixador cubano, Che dirigiu o Instituto Nacional da Reforma Agrária, presidiu o Banco Nacional e o Ministério da Indústria. Com a bagagem acumulada em cada uma das missões no governo revolucionário, Guevara publicou em 1965 a obra “O Socialismo e o Homem em Cuba”, na qual expôs um de seus principais axiomas, o de que a revolução deve acontecer, em primeiro lugar, por meio da transformação humana.
A esta ideia, que desenvolveu como o conceito do “Homem Novo”, Che somou todos seus valores de cooperação e amor para além das nacionalidades. “Nossos revolucionários da vanguarda têm que idealizar esse amor aos povos e às causas mais sagradas. Nessas condições, têm que ter uma grandiosa humanidade, um senso de justiça e humanidade. Todos os dias, têm de lutar para que esse amor à humanidade se transformem em feitos concretos, um ato de exemplo e mobilização. A revolução se faz através do homem, mas o homem tem que forjar dia-a-dia seu espírito revolucionário. O caminho é grande e desconhecido, como o ser humano e suas limitações, faremos, nós mesmos, o homem do século 21”, disse Che certa vez, em discurso lembrado pelo documentário argentino “Che, un Hombre Nuevo”.
“Sem dúvida, Che parte de Marx, mas o ‘Homem Novo’ é antes de tudo um conceito ético, se refere à moral comunista, à superação do egoísmo e do individualismo do passado, a uma atitude de solidariedade e de partilha igualitária, de disposição ao sacrifício pessoal”, afirma Löwy.
Na opinião de Djacira Araújo, integrante do coletivo de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Teto (MST) e da Direção Nacional da Consulta Popular, o conceito do Homem Novo, para Che, está enraizado em uma convicção profunda de que a sociedade capitalista é desumana e, sobretudo, desumanizadora.
“Compreender a profundidade dessa estrutura social desagregadora, violenta, baseada na exploração do homem pelo homem, dos trabalhadores, na dominação de nações sobre os povos de outras nações, fez com que Che compreendesse que essa sociedade é produto do ser humano, seu comportamento político e social, e portanto exige uma transformação profunda estrutural e também das pessoas. Por isso Che colocou a necessidade de se auto-construir na sua prática revolucionária. Ele buscou viver isso na prática, sendo um exemplo de solidariedade e internacionalismo, porque o sistema capitalista é um sistema mundial”, explicou Djacira.
Para Pâmela Cecília Zerosa, coordenadora do Centro de Estudos Latinoamericanos Ernesto Che Guevara (CEL-CHE), um aparelho do governo municipal de Rosário, na Argentina, o debate internacionalista proposto pelo revolucionário é inspirador até os dias de hoje, principalmente para os mais jovens.
“Eu gosto muito de um discurso que Che fez aos jovens comunistas, no qual ele afirma que temos que ficar felizes quando, em algum rincão do mundo, não importa qual seja, pode-se alçar uma bandeira de liberdade, e nos sentirmos angustiados quando em outro lugar há necessidade ou sofrimento. E essa ideia que queremos passar aos jovens que frequentam nosso centro. Para o CEL-CHE, o principal legado teórico de Che é esse internacionalismo. Quando tomamos a questão do humanismo e da solidariedade que ele propunha, podemos criar um diálogo a nível continental de que somos todos irmãos de uma mesma história”, afirmou.
Coerente, Guevara acabou deixando o importante cargo de embaixador e mais uma vez colocou-se em trânsito pelo mundo, como viajante e guerrilheiro, a partir de 1965. Somou-se, primeiramente, à luta por independência dos congoleses herdeiros do projeto descolonizador do presidente Patrice Lumumba, deposto por um golpe de Estado e assassinado em 1961. Com mais de cem internacionalistas cubanos, Che viajou com o objetivo de compartilhar as experiências da guerrilha cubana, mas se frustrou com as dificuldades de mobilização de uma conjuntura política fragmentada em múltiplas frentes. O “Diário do Congo”, que escreveu sobre a experiência, tem como primeira frase: “esta é a história de um fracasso”. A contragosto, Che cedeu e deixou o país africano.
Mesmo abalado pela experiência, no entanto, seguiu acreditando que seu lugar era com aqueles que lutavam, “hasta la victoria siempre” (até a vitória, sempre). Procurado por anticomunistas, se refugiou por meses em Tanzânia, Tchecoslováquia e Alemanha Oriental. Em julho de 1966, voltou secretamente a Cuba pela última vez, disfarçado como um diplomata uruguaio com o nome de Adolfo Mena. Em novembro do mesmo ano, ainda disfarçado, viu a esposa Aleida March e seus filhos pela última vez e deixou o país para somar-se ao Movimento Nacionalista Revolucionário Boliviano (MNR).
Sua entrada na Bolívia se deu pelo Brasil. Chegou a São Paulo em 4 de novembro de 1966 e hospedou-se em um hotel na região central, onde se reuniu com os militantes Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira. Daqui, utilizando a hoje turística rota do “trem da morte”, partiu para a selva boliviana, onde treinou e lutou por um ano, com outros 47 combatentes, que se auto-nomearam Exército da Liberação Nacional da Bolívia (ELN). Ao longo de 11 meses, antes de ser capturado a mando da CIA, Che escreveu seu último livro, o “Diário da Bolívia”, e a memorável “Mensagem aos Povos do Mundo”.
O texto foi um dos elementos centrais de uma catarse revolucionária internacional impulsionada pelo sucesso das revoluções Cubana e Argelina (1962), além da resistência vietnamita à guerra de aniquilação empreendida pelos EUA, que já durava mais de uma década. Em sua mensagem, Che conclamou a Conferência de Solidariedade aos Povos da África, Ásia e América Latina, mais conhecida como a Tricontinental, a “construir um, dois, três Vietnãs” em apoio à luta antimperialista em curso na Ásia.
Como legado da Tricontinental, foi criada a Organização de Solidariedade com os Povos da África, Ásia e América Latina (OSPAAAL), que até hoje funciona em Havana, e já engajou em uma série de campanhas de apoio aos processos internacionais de resistência. Em entrevista a essa reportagem, o intelectual e jornalista cubano, integrante da OSPAAAL, Santiago Feliú, destacou que a mensagem de Che continua com uma “vigência notável”.
“A vida provou que ele estava certo, porque na década de 1990 e neste século dezenas de nações foram libertadas dos seus colonizadores e dos jogos neocoloniais, e assumiram claramente posições anti-imperialistas, mesmo que não sejam anticapitalistas. Nos últimos 50 anos, desde que Che foi assassinado, o mundo mudou por completo, e infelizmente, nem sempre para melhor. A OSPAAAL foi se adequando para acionar sua solidariedade com as lutas. Não houve uma só causa libertadora, ao mais genuíno conceito guevariano de internacionalismo proletário, que a OSPAAAL não esteve envolvida. O que foi colocado por Che, com um sentido claro cada vez mais generalizado, é a rejeição de qualquer tipo de imperialismo”, afirmou.
Löwy ressalta que a síntese entre a práxis antiimperialista internacionalista e a reflexão sobre a ética pós-capitalista do “Homem Novo” é o que se pode chamar de “guevarismo”, e o sociólogo também acredita que essa filosofia se encontra mais atual do que nunca. “Com o fim do chamado ‘socialismo real’, ganham nova atualidade a critica de Guevara ao modelo soviético e sua busca de um novo paradigma socialista, em particular em seus últimos escritos”, pondera o professor.
Feliú destacou ainda a famosa advertência de Che feita em um discurso realizado na Organização das Nações Unidas (ONU) em 1964. “Não se pode confiar no imperialismo nem um tantinho assim. Nada! Porque a natureza do imperialismo é a que bestializa os homens”. “Cada etapa de todas as atividades do próprio Che e seus seguidores ao longo dos anos foi marcada pela solidariedade internacional, pela unidade imperiosa das forças internas de cada nação para lutar pela cooperação dos países mais fortes progressistas. Não havia falsidades, nem imitações ou demagogias. Che não exigia o que ele próprio não fora capaz de cumprir”, conclui Feliú.