É isso, não posso e não quero negar.
Nem somos muitos — aliás, somos cada vez menos; o assunto aqui é velório —, mas somos barulhentos.
A bronca geralmente vem embalada na chave do desrespeito com os mortos vizinhos. Desculpem, não fazemos por mal. Celebramos os nossos mortos com a potência que eles tinham e despertavam em nós.
Recontamos suas histórias, regargalhamos suas piadas, renascemos diante da morte. Não, aquele ali não é o nosso amigo. Ele é vivo, ele dança, ele sorri, abraça e celebra com a força do gigante que é. Não se trata de negar o óbvio. Sim, ele morreu, e a gente se indigna. Mas aprendemos — inclusive com ele — que a indignação é uma força mobilizadora, e não depressiva.
Que, diante do absurdo, grita-se. E, como não podemos vencê-la, nós a humilhamos. Sim, cara morte, você sempre vence essa aposta, mas não leva o que Celso Fonseca nos ensinou, e nem a história que ele trilhou.
Desde as carteiras da faculdade Cásper Líbero até a aposentadoria em dezembro último, Celso passou pelas redações do Jornal da Tarde, revistas IstoÉ e Brasileiros, portais Terra e R7; sem contar a bancada do Roda Viva e colaborações com diversos veículos. Mais do que isso, deixou incontáveis amigos.
A morte vence, mas não tem o poder de apagar o dia em que colocou Horses no aparelho de som e fez uma pausa de olhos fechados antes de Patti Smith entrar na minha vida anunciando que Jesus morreu pelos pecados de alguém que não ela.
Ou quando me levou ao CCBB, no seu amado centro de São Paulo, para uma sessão de Greendale, filme de Neil Young, muito antes de eu saber o que era a lua da colheita.
Os significados das palavras feérico e melífluo, introduzidas em textos tão banais como um roteiro de decorações de Natal publicado em revistas que nem existem mais. A veemência com que recomendou que eu lesse 2666, de Roberto Bolaño, e A Estrada, de Cormac McCarthy.
A galhofa carinhosa com que apontava meus erros. A generosidade com que abria sua casa e ouvidos e prestava atenção aos dramas dos meus 20 e poucos anos. A confiança (ou seria um trote..? nunca saberei) com que me mandou ligar para o senador Eduardo Suplicy no meu primeiro dia de trabalho para retomar seu passado de lutador de boxe e me convidou para as redações que dirigiu depois. A fofura com que me pedia para emitir a sua nota na nossa “grande empresa”, sócio.
A ironia com que arrumava uma desculpa para abrir os trabalhos: “já cumpri meu dever cívico — entreguei o imposto de renda, votei, peguei um papel do chão; qualquer coisa valia — vou tomar uma cervejinha”.
O espalhafato com que dominava uma pista de dança.
Quando meu gravador quebrou, na primeira grande entrevista que fiz, e eu quase surtei, você me acolheu. “Calma, está tudo na sua cabeça ainda. Senta e escreve”.
A paciência com que me contou quem eram Itamar Assumpção e aquele Isca de Polícia sentado logo ali, Luiz Chagas. Foi no velório dele, inclusive, que nos falamos pela última vez. Aquele papo de “vamos marcar”. Marquei touca. Perdi. Você viu em mim muito mais e muito antes do que eu sabia que tinha.
Por isso, Celso, hoje eu me permito ser verborrágico, cafona e até te desobedecer ao escrever e publicar, sem reler, essa carta que se apoia em uma estrutura narrativa já cansada, mas nem assim não deixa de ser de amor.
Se fazemos barulho ao nos despedir, os motivos são esses. Espero que compreendam.