Durante audiência pública realizada na Comissão de Segurança Pública do Senado em 20 de novembro último, o senador Magno Malta (PL-ES) comparou a morte ocorrida um ano antes no Complexo Penitenciário da Papuda (DF), por mal súbito, de Clériston Pereira da Cunha, acusado de participar do frustrado golpe de estado de 8 de janeiro de 2023, ao assassinato sob tortura do jornalista Vladimir Herzog em 25 de outubro de 1975, em São Paulo, em dependência do então II Exército, hoje Comando Militar Sudeste.
Não foi a primeira vez que o parlamentar do PL fez tal comparação estapafúrdia. Em 10 de dezembro de 2023, em manifestação bolsonarista na Avenida Paulista, o senador Malta já havia traçado esse paralelo. Um ano depois, em 11 de setembro de 2024, em pronunciamento no Senado, voltou a comparar a morte de Clériston ao assassinato de Vladimir Herzog, de modo a sustentar suas teses de que o Brasil está vivendo uma “ditadura do proletariado” e de que o ministro Alexandre de Moraes, do STF, merece o impeachment.
“Todas as vezes que eles querem falar sobre 64, golpe militar, eles usam a figura de um advogado [sic] chamado Herzog, que morreu nos porões da ditadura”, disse o senador do PL no dia 20. “Ah, é? E agora nós estamos vivendo a ditadura do proletariado, que eles nunca quiseram democracia, e nós temos Clezão [Clériston] morto nos porões dessa ditadura estabelecida agora… Todas as vezes que você aponta uma indignidade, uma narrativa, uma mentira dessa esquerda desgraçada, eles gritam ‘Marielle vive’”.
Qualquer pessoa razoavelmente bem informada sobre a história brasileira e sobre o que se passou durante a Ditadura Militar (1964-1985) sabe perfeitamente que Herzog era um jornalista e não um advogado. Porém, o senador Malta cometeu esse erro em setembro de 2023 e o repetiu em novembro de 2024, o que revela ou despreparo, ou má fé. Pode parecer um detalhe, mas é parte de um enredo deplorável.
O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) vêm a público, assim, repudiar energicamente as desrespeitosas declarações do senador do PL sobre nosso companheiro Vladimir Herzog (Vlado), que exercia os cargos de diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo e professor de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP quando foi assassinado no principal centro de torturas da Ditadura Militar: o DOI-CODI do II Exército.
O senador Malta desvela a sua ignorância ao associar o nome de Herzog àqueles que tentaram um golpe de estado em 8 de janeiro de 2023. Herzog foi perseguido porque combatia a opressão. Seu trabalho jornalístico incomodava a Ditadura Militar. Chamado a prestar depoimento, apresentou-se de peito aberto, sozinho, desacompanhado até de advogados, como um homem livre que nada tinha a temer. Logo depois, foi morto covardemente sob tortura, ao receber choques elétricos.
Comparar como semelhantes o modus operandi do DOI-CODI e a situação dos presos políticos daquela época ao estado dos “patriotas” presos no Complexo Penitenciário da Papuda é, no mínimo, falta de senso de realidade. Ninguém está sendo torturado na Papuda, até onde se sabe. A morte de Clériston é lamentável, mas não resultou de violência. Ademais, é óbvio que não existe no país uma “ditadura do proletariado”.
A fotografia de Vlado morto no cárcere, supostamente “suicidado” por meio de um inviável enforcamento, tornou-se um ícone da luta política no nosso país e da resistência ao Terrorismo de Estado. Sobretudo ajudou a provar a prática da tortura nos quartéis e a denunciar as mentiras dos militares.
À época, o assassinato de Vlado no DOI-CODI do II Exército comoveu a sociedade paulista e brasileira mas, particularmente, indignou a nossa categoria profissional. Rapidamente foi publicado um manifesto, assinado por 1.004 jornalistas de todo o país, que exigia do Exército explicações a respeito de sua morte. Dois dias depois, o espaço de assembleias do SJSP recebeu o nome de “Auditório Vladimir Herzog”. O ato ecumênico na Catedral da Sé que marcou o sétimo dia de seu assassinato, ato liderado por dom Paulo Evaristo Arns, reverendo Jaime Wright e rabino Henry Sobel, reuniu milhares de pessoas num vigoroso protesto contra a Ditadura Militar.
“Quando perdemos a capacidade de nos indignar com as atrocidades praticadas contra os outros perdemos também o direito de nos considerar seres humanos civilizados”, disse um dia Vlado. Ele é um símbolo de liberdade, dignidade, integridade profissional. Ele nomeia o mais importante prêmio do jornalismo brasileiro, o “Prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos”, criado em 1979. O SJSP e a Fenaj não permitirão que seu nome seja vilipendiado por quem defende o retrocesso social e o fascismo.
São Paulo, 2 de dezembro de 2024
SJSP
Fenaj