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Quatro décadas de luta vão para a universidade

Quatro décadas de luta popular vão para a universidade

Acervo do CPV é composto por cerca de 100 mil documentos textuais, além de arquivos sonoros e outros, produzidos, principalmente, entre as décadas de 1970 e 1990. Fotos: Lucas Duarte de Souza/RBAO Centro de Documentação e Pesquisa Vergueiro (o antigo Centro Pastoral Vergueiro, CPV) surgiu em 15 de novembro de 1973, no período mais agudo da ditadura, e resistiu. Nestes 45 anos, acumulou textos, imagens, sons e sobretudo memória – de movimentos populares, ações sindicais, resistência democrática. Por necessidade de sobrevivência, uma história com mais de 100 mil documentos textuais – o equivalente a 1 milhão de páginas, além de livros, periódicos e material audiovisual – está prestes a mudar de endereço: o acervo, que surgiu na Rua Vergueiro, onde fica a Capela Cristo Operário, e hoje é mantido no bairro da Bela Vista, região central de São Paulo – tem sede própria desde 1999 –, vai se mudar na próxima quinta-feira (21) para o Arquivo Edgard Leuenroth, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

A primeira publicação é do final de 1973, no período mais violento da ditadura, o “meio do túnel”, como alguns definiram, entre o AI-5 e o processo de abertura. Era um “documento de urgência de bispos missionários”, Y-Juca-Pirama – O índio: aquele que deve morrer, assinado por 12 religiosos, sendo seis bispos: Máximo Biennès (Cáceres, MT), Hélio Campos (Viana, MA), Estevão Cardoso de Avellar (Marabá, PA), Pedro Casaldáliga (São Félix, MT), Tomás Balduíno (Goiás, GO) e Agostinho José Sartori (Palmas, PR). O CPV nasceu ligado aos dominicanos, pelas mãos do frei Giorgio Callegari (1936-2003), que foi preso e fez greve de fome no Brasil, onde havia chegado em 1966, vindo da Itália.

“A ideia começou a ser gestada em 1968”, conta a coordenadora do CPV, Luiza Peixoto, há quatro décadas – com alguns intervalos – ligada ao centro. Artistas, intelectuais, operários queriam “dar acesso a informações que o trabalhador não tinha”. Diversas tendências políticas se juntaram para produzir material. Nestas quatro décadas, o CPV reuniu mais de 100 mil documentos do movimento sindical e popular, estimulando a preservação de sua própria história.

“Muitas vezes o trabalho do CPV era a única fonte de informação”, afirma Luiza, lembrando que o centro também produzia informes bibliográficos, dossiês e clippings com material jornalístico. Chegou a ter gráfica e estúdio de gravação. E, em média, 15 funcionários. Atualmente, apenas Luiza cuida do local – além de três voluntários –, aguardando a retirada final do acervo, que inclui adesivos, apostilas, artigos, boletins, bottoms, cadernos populares, cartas, cartazes, cartilhas, cordel, filipetas, fitas cassete, folhetos, fotografias, livros, manuais, recortes, relatórios, teses… “A gente acredita que é o maior acervo de documentação sindical e popular do Brasil.”

Estão lá, por exemplo, o boletim Quinzena, que era distribuído por assinatura dos leitores, um texto de avaliação sobre a greve geral de 1983, publicações como InterCentros e A Propósito, ligados a movimentos populares, o clandestino Hora Extra, da oposição metalúrgica em São Paulo, e o Maria Quitéria, do Movimento Feminino pela Anistia. Ou cadernos editados pelo Centro Intercultural de Documentação (Cidoc, com sede no México), como um escrito por Francisco Julião sobre as Ligas Camponesas no período de outubro de 1962 a abril de 1964. E uma infinidade de publicações alternativas, desde os clássicos Pasquim Versus, o gaúcho Coojornal e O São Paulo (jornal da Arquidiocese), até títulos como Gente da TerraBagaçoFrente OperáriaLampiãoVoz AnarquistaVanguarda Obrera e o Jornal da Constituinte.

Os trabalhados eram sempre direcionados à esquerda em geral, mas sem vinculação partidária, observa Luiza. “Tudo coletivo, tudo decidido coletivamente.” Em tempos de ditadura, o CPV chegou a ser visto como “braço direito” de Dom Paulo Evaristo Arns. “Éramos vigiados permanentemente”, lembra a coordenadora.

“História de todos nós”

“A memória histórica da luta contra a exploração, de grande valor para as ações atuais e futuras, deve ser preservada e difundida. O espaço mais adequado para conservar, resgatar, divulgar organizadamente a memória da classe são os arquivos e centros de documentação”, diz o CPV. O centro também recebeu visitas de integrantes da Comissão Nacional da Verdade, em busca de subsídios para o relatório divulgado em dezembro de 2014.

 Outra publicação é o Projeto sem Fronteiras, com pesquisas de músicas e ritmos africanos e latino-americanos e cadernos como América NegraCanto da Mulher e Canto de Resistência. Alguns trabalhos são assinados pelo cantor, compositor, arranjador e produtor Carlinhos Antunes, hoje à frente da Orquestra Mundana, formada por refugiados.

Também podem ser encontrados alguns relatos datilografados sobre torturas no Brasil, um manifesto contra o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), textos sobre movimentos de transporte, moradia, favelas, carestia, relações de produtos consumidos na cidade de São Paulo, extratos do Superior Tribunal Militar. Ousadias em uma época de intenso cerceamento da liberdade. “Fazer uma reunião já era um problema, era extremamente difícil e arriscado”, recorda Luiza, ressaltando a importância do acervo. “Às vezes, um grupo só conseguiu fazer um boletim. E está aqui.” 

O centro enfrenta dificuldades há alguns anos. Foi se mantendo à custa de campanhas, convênios com sindicatos e parcerias, como em 2011, quando acordo com a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo permitiu digitalizar 70 mil imagens do acervo, entre cartazes, jornais, boletins e revistas das décadas de 1970, 1980 e 1990. “Não houve uma política de estruturação de financiamento”, comenta Luiza. Era preciso salvar o CPV “física e politicamente”, lembra. “Uma das questões que a gente coloca é que o acervo vá (para a Unicamp) na íntegra, que se mantenha a forma de constituição do acervo.” 

Depois de 40 anos lidando cotidianamente com tanta informação e memória, a sensação de ver o acervo migrando para Campinas é de alívio ou de tristeza? As duas coisas, responde Luiza, que já dividiu o choro e muitas históricas com alguns companheiros de jornada, durante um bota-fora feito em maio na própria sede, cujo destino ainda não sabe qual será. “Teve gente que veio se despedir. Porque é a história de todos nós.”

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