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Memória da imprensa negra é relembrada em páginas de jornal

Memória da imprensa negra é relembrada em páginas de jornal


 

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Edição fac-similar da seção Afro-Latino-América do jornal alternativo Versus, dos anos 1970, apresenta ao Brasil do século XXI a memória da imprensa negra e socialista na segunda metade do século passado.

O suplemento Afro-Latino-América, publicado entre os anos 1977 e 1979, é lançado agora em versão fac-similar e apresenta as 20 edições encartadas nos números 12 a 31 do jornal Versus. Com uma imprensa especial, típica da imprensa negra paulista da época, com seu caráter socialista pouco conhecido e divulgado e muito marginalizado pela grande mídia.

A seção Afro-Latino-América foi editada por uma geração de jornalistas, estudantes e ativistas antirracistas que àquela época resistiu à ditadura militar empunhando a bandeira do combate ao racismo para desmistificar a ideologia oficial do mito da democracia racial no Brasil.

Denunciar o racismo disfarçado pelo autoritarismo do regime militar imposto em 1964 era tarefa diária da militância. O Afro-Latino-América contou e fotografou muitas histórias e registrou a memória de personalidades negras, ao retratar a realidade do negro censurada. Neste ano de lançamento do fac-símile completa-se meio século do golpe militar de 1964.

A seção inaugural no ano de 1977 foi aberta pelo artigo da jornalista Neusa Maria Pereira, publicado na edição nº 11 de Versus, sob o título “Em defesa da dignidade das mulheres negras em uma sociedade racista”. A crítica contundente das suas palavras denunciava:

 

“A mulher negra pertence a uma das minorias raciais mais cruelmente vitimadas pelos castigos da divisão da sociedade em classe. Esta divisão é a maior responsável pela campanha da difamação sofrida pela mulher negra, considerada pelos representantes desta sociedade de classes como objeto sexual de consumo. Há muito que nós, afro-brasileiros, estamos lutando para apagar esta mancha original e sair do lugar onde nos colocaram”. Jornal Versus nº 11, junho de 1977, SP, págs. 22 e 23.

 

As palavras de Neusa Maria Pereira foram a expressão do pioneirismo da luta da emancipação da mulher, que à época já esboçava uma leitura da corrente de pensamento feminista marcado pela dominação de gênero, raça e classe. Do artigo de Neusa Maria Pereira na edição de Versus do ano de 1977 nasceu a seção Afro-Latino-América, e a imprensa negra ressurge com um colorido político mais acentuado.

O jornal Versus aninhou o novo suplemento porque o seu editorial era dedicado à arte, cultura e revolução e estava em seu horizonte dar voz à luta internacional dos oprimidos, dos povos africanos, dos latino-americanos e, especialmente, dos trabalhadores brasileiros.

O jornal Versus, fundado em outubro de 1975, editado em São Paulo pelo jornalista Marcos Faerman, foi uma publicação bimestral de circulação nacional famoso por sua linguagem e estilo alternativo de resistência e contestação política.1 Em sua décima segunda edição, lançou-se a seção Afro-Latino-América, com o ativismo crítico dos estudantes e jornalistas negros. Parte desses eram ativistas do Núcleo Negro Socialista, um grupo de orientação de esquerda que reunia lideranças negras de vários estados brasileiros com ação e pensamento crítico capaz de romper o silêncio diante dos casos de preconceito e discriminação no trabalho, na escola, e na sociedade, principalmente os episódios de repressão e todo tipo de violência contra o trabalhador e a trabalhadora negra.

Os artigos e as reportagens das edições deste fac-símile estampavam o protesto negro nas ruas, a exemplo do texto de Hamilton Cardoso.2 Ele fez uma grande abordagem por ocasião da manifestação de 7 de julho de 1978 nas escadarias do Teatro Municipal que inaugurou os atos de protesto do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial – MUCDR, depois conhecido por Movimento Negro Unificado.

Outra entrevista marcante é a de Astrogildo Esteves Filho, correspondente de Versus no Rio de Janeiro, que revelou a história da viagem de exílio de Tereza Santos, atriz e educadora, a três países do continente africano – Guiné-Bissau, Angola e Moçambique – e sua dedicação às lutas de libertação, nas áreas de educação e cultura.

Notícias internacionais da luta anticolonização do negro na África e nas Américas estão guardadas nestas páginas com inúmeras lições de protagonismos, liderança, reflexão acerca dos ideais pan-africanistas de coloração socialista, a exemplo do papel do martinicano Frantz Fanon na Argélia, dos panteras negras nos Estados Unidos, de Steve Biko na África do Sul, de Amílcar Cabral em Guiné-Bissau e Cabo Verde, de Agostinho Neto em Angola, de Samora Machel em Moçambique e de Abdias do Nascimento no Congresso de Cultura Negra das Américas realizado na Colômbia, no Panamá e no Brasil.

Por outro lado, as notícias nacionais acerca da realidade do negro e da negra estão estampadas nas páginas do fac-símile e nos apresenta características dos ideais revolucionários da época que aproximaram o jornalismo negro do socialismo e demarcaram a construção de um modelo de ação política chamado de “antirracismo da esquerda brasileira”, que desde então se preocupava com o universo da poesia, música, teatro, literatura, história e sociologia que por si já evidenciava a resistência histórica dos personagens e da cultura negra.

Denunciava sob os olhos da censura o limiar entre o mito e a realidade do homem negro e da mulher negra nesse período. A questão da terra de quilombos, do voto negro e do voto do analfabeto no contexto da reforma do pluripartidarismo, e a escandalosa situação de extermínio das crianças e adolescentes negros.

Todas as notícias são um conjunto dos artigos e reportagens que nos recordam as lutas e os contextos dos principais temas e bandeiras do Movimento Negro Brasileiro e retratam especialmente as novas gerações de ativistas antirracistas que cresceram durante  a ditadura, o quão difícil foi lutar contra o regime militar, combater o racismo e desmistificar a democracia racial brasileira.

Vale a pena se debruçar sobre essas páginas do fac-símile Afro-Latino-América e descobrir as inúmeras versões e interpretações guardadas nas palavras, entrelinhas, fotografias, poesias, cartazes, reportagens e personagens históricos condensados neste período da história do Brasil.

Saudações a todos que construíram e ou participaram dessa história porque direta ou indiretamente nos ajudaram na publicação inédita do fac-símile Afro-Latino-América.

 

 

1 Marcos Faerman (1944-1999), jornalista e gaúcho, foi diretor e responsável do jornal Versus.

2 Hamilton Bernardes Cardoso (1953-1999) nasceu em Catanduva e cresceu na capital de São Paulo. Formou-se em jornalismo nas Faculdades Casper Líbero e Metodista, de Rudge Ramos. Foi fundador do Afro-Latino-América, o encarte do jornal Versus. É considerado um dos mais importantes líderes do Movimento Negro Contemporâneo Brasileiro.

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