Depoimentos darão base a inquérito civil instaurado para proteger o direito constitucional à informação
Balas de borracha no rosto e pelas costas, espancamentos, atropelamentos, ameaças sob a mira de escopetas, prisões arbitrárias, provas falsificadas, xingamentos e terror psicológico, além de câmeras fotográficas destruídas, celulares e cartões de memória subtraídos. É dessa forma que a Polícia Militar paulista, comandada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB), tem atuado contra os jornalistas nas manifestações, sobretudo a partir dos protestos de junho de 2013.
Em audiência pública realizada nesta quarta-feira (28), no Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP), no centro da capital, 16 profissionais da comunicação prestaram depoimento e relataram uma infinidade de violações da PM que, no estado mais importante do país, confirmam que estão em risco a liberdade de expressão, de manifestação e do exercício profissional da imprensa.
Os depoimentos prestados na audiência, intitulada “Tutela do direito à informação: cerceamento da atividade dos profissionais de imprensa em manifestações de rua e/ou atos públicos em razão da violência praticada por agentes do Estado”, darão base a um inquérito civil já instaurado, que visa proteger o direito constitucional à informação.
Além da truculência policial, dirigida aos jornalistas por registrarem as ações abusivas da PM, também preocupa o apoio da Justiça a esse tipo de violência, ressaltou afirmou Paulo Zocchi, presidente do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP), entidade parceira do MP na realização da audiência.
Para o sindicalista, ao culpar os fotógrafos Sérgio Silva e Alex Silveira por perderem a visão com tiros de bala de borracha da PM nas manifestações, o Judiciário paulista dá carta branca para que a polícia agrida os jornalistas
“Parece uma questão menor no dia seguinte à anulação da condenação dos policiais que assassinaram 111 presos no Carandiru. Mas as questões têm uma ligação e não podemos deixar nenhum aspecto do arbítrio sem enfrentamento”. No depoimento, o dirigente defendeu a desmilitarização da polícia, o fim do uso das balas de borracha e das bombas de gás, e cobrou a investigação dos casos e punição dos responsáveis.
Zocchi também pontuou que, desde 2013, com o recrudescimento da violência contra os jornalistas, o SJSP busca diálogo com a Secretaria de Segurança Pública (SSP) e com o governador de São Paulo para explanar sobre os casos de agressão e violência e discutir soluções que garantam a liberdade de imprensa, mas a entidade nunca foi atendida pelo governo paulista.
Violência nas ruas, descaso nas delegacias
Nos últimos três anos, a violência contra jornalistas no país foi maior do que a registrada em uma década. Entre 2002 e 2012, foram 219 agressões e impedimentos do exercício da profissão, segundo dados da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj). De 2013 até agora, são cerca de 300 jornalistas vítimas de violência no Brasil, dos quais quase 150 somente no estado de São Paulo, aponta levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).
Vinícius Gomes fotografou e filmou a ação da polícia contra manifestantes no centro da capital, nas proximidades do jornal Folha de S.Paulo, no último dia 31 de agosto e, na ocasião, registrou o choque de um acidente envolvendo dois policiais das Rondas Ostensivas Com Apoio de Motocicletas. Um terceiro policial desceu da motocicleta dizendo “é você!”, e o fotógrafo foi cercado e espancado por um grupo de policiais com socos, chutes e uma pancada com cassetete na cabeça.
“Só consegui me encolher no chão enquanto eu apanhava”, relatou. Depois da agressão, os policiais algemaram o profissional, disseram para ele andar olhando para o chão e, já sangrando, foi levado ao 2º Distrito Policial (DP), no Bom Retiro. Depois de aguardar longo tempo na delegacia, em pé, olhando para a parede, o fotógrafo foi encaminhado a um pronto socorro, onde tomou quatro pontos na cabeça e, em seguida, foi levado ao 78º DP, no bairro dos Jardins até a liberação, de madrugada.
A repórter Cintia Gomes, da CBN, levou um tiro de borracha pelas costas enquanto corria de um cerco policial aos manifestantes, durante protesto contra aumento da tarifa de transporte, em janeiro último. Em vez de o caso ter sido registrado corretamente como lesão corporal, a repórter disse que o boletim de ocorrência foi lavrado como abuso de autoridade na 78º DP. “Para além da dor, fui ferida não só na minha integridade física, mas no exercício da profissão e na minha crença que vivemos num Estado livre e democrático”.
Orientação: registro de BO e contato direto com o Sindicato
Vários jornalistas que prestaram depoimento ao MP se queixaram da dificuldade de registrar boletins de ocorrência, pois têm enfrentado a resistência de delegados e, entre os que fizeram exame de corpo de delito no IML, a maioria não tinha recebido o laudo da violência.
Apesar da questão, o Sindicato dos Jornalistas reforça que é essencial os profissionais de comunicação não aceitarem qualquer tipo de violência policial, registrando o boletim de ocorrência numa delegacia e também comunicando o caso ao SJSP, para que a entidade possa prestar apoio e para levar o conjunto das denúncias a organizações como a Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ).
Quando houver dificuldades ou recusa ao registro do boletim de ocorrência numa delegacia, a orientação do Ministério Público é que o jornalista procure o Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial (GECEP), órgão ligado à Promotoria de Justiça que fiscaliza a atuação da polícia. O GECEP fica no térreo do Fórum Criminal da Barra Funda, na Av. Dr. Abraão Ribeiro nº 313.
Os profissionais de comunicação também podem – e devem – continuar prestando depoimentos para relatar agressões sofridas junto ao MP. Basta solicitar agendamento pelos fones (11) 3119-9260 e 3119-9062 ou, ainda, pelo e-mail inclusaosocial@mpsp.mp.br. Caso o jornalista tenha fotos ou vídeos que comprovem a violência, o MP solicita que o material seja compartilhado para ser incluído entre as provas do inquérito instaurado.
Encaminhamentos
Em entrevista ao Portal do SJSP, o promotor Eduardo Ferreira Valério afirmou que não é possível antecipar qual instrumento jurídico o MP utilizará para combater a violência policial contra os jornalistas. Mas explicou que, a partir dos depoimentos e outras provas colhidos na audiência, o caminho pode ser o do ajustamento de conduta e de recomendações à atuação da polícia ou, ainda, a judicialização por meio de uma ação civil pública contra o Estado paulista.
“É adequar a atuação policial a balizas democráticas e impedir que policiais usem gás de pimenta e tiros de bala de borracha a torto e a direito no meio da população”, disse Valério.
As informações prestadas pelos depoentes serão organizadas e, em até 10 dias, o relatório será divulgado pela Promotoria de Direitos Humanos e Inclusão Social do MP. A audiência pública foi realizada pela Promotoria de Justiça dos Direitos Humanos e Inclusão Social do MP, em parceria com o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a Conectas, o Artigo 19, o Sou da Paz e o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.
Escrito por: Flaviana Serafim Foto: André Freire