Sérgio Vital Tafner Jorge, fotografo sindicalizado ao SJSP desde 1956 e hoje com 76 anos, testemunhou um fato histórico do Brasil. Ele presenciou a farsa que os militares montaram por ocasião da morte de Carlos Marighella, líder da Aliança Libertadora Nacional (ALN). E garante que seus assassinos retiraram o corpo do veículo e depois o recolocaram em outra posição para simular que havia ocorrido um tiroteio. Na capa desta edição do Unidade, ele mostra a reprodução montada por ele tendo um amigo como modelo, com a cena como ele viu na noite de 4 de novembro de 1969.
A reprodução revela como ele encontrou o corpo de Marighella quando chegou ao local para fotografar e foi impedido. Após 40 minutos de espera, sob supervisão do delegado Fleury (Dops), foi obrigado a registrar a cena montada pela polícia (foto acima). Sérgio trabalhou no jornal O Dia, A Gazeta, Manchete e na editora Abril. Marighella foi assassinado em uma emboscada em São Paulo, depois de torturarem padres dominicanos, com quem ele tinha contato. É esta farsa que ele revelou à Comissão da Verdade do SJSP.
Nós saímos da redação da Manchete em seis pessoas para cobrir o jogo Santos X Corinthians. No caminho, a rádio Panamerica noticiou um tiroteio e a morte do Marighella na Alameda Casa Branca. Vimos a importância da notícia, nos dividimos e corremos para lá. Em dez minutos estávamos no local. Não tinha sinal de tiroteio. Quando estávamos chegando perto do carro onde estava o corpo – um fusquinha parado em baixo de uma árvore – os policias mandaram que eu e mais quatro fotógrafos encostássemos em um muro e colocássemos as máquinas no chão.
Antes disso, o então temido delegado do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), Sérgio Paranhos Fleury, aos berros, disse para que nós não fotografarmos: “quem fotografar, eu levo preso”. Então ficamos parados, olhando o corpo do Marighella no carro, sentado ao volante, com meio corpo e uma perna para fora.
Tinha tiros no vidro da frente e no vidro de trás. Percebi que não tinha resquícios de sangue. Só havia uma pequena mancha no queixo e no dedo. E ele estava caído numa posição com o pé saindo para fora do carro. Depois apareceram três policiais que retiraram o corpo do Marighella, o deitaram no chão, mexeram nele, retiraram coisas do bolso, tiraram a camisa dele, que estava dentro da calça, para fora.
Quando mexeram no corpo, saiu muito sangue pelo buraco do tiro no peito. E na hora de colocar (o corpo) de volta dentro do carro, não conseguiram porque ele era muito grande, pesado. Então um deles deu a volta pelo carro, entrou no veículo e puxou pela porta do passageiro, exatamente na posição que todo mundo fotografou.
Então o Fleury autorizou as fotos.
Quando eu fiquei sabendo que o fotógrafo do Vlado havia contado a verdade sobre sua morte , tomei coragem de contar a minha sobre o Marighella. Procurei os fotógrafos que estavam lá na época e descobri que todos haviam morrido. Eu sou o único vivo que presenciei aquela cena.
Para ter certeza sobre o que eu havia visto naquele dia procurei o meu médico do coração para saber a opinião profissional dele sobre o caso.
Acho difícil o Marighella ter esboçado qualquer reação. Perto do Volkswagen havia uma caminhonete com os policiais deitados dentro, no outro lado da rua. Na Alameda Lorena, a 50 metros dali, os policiais estavam parando todo mundo. Só havia movimento dos próprios policiais.
Se houve uma reação do Maringuella foi, no máximo, ter saído do carro. Quando saiu e viu o que estava acontecendo – possivelmente o tiroteio, que segundo relatos teve muitos tiros – ele voltou para o carro para se abrigar. Possivelmente, na pasta que falam que estava atrás do carro, tinha um revólver. Eu vi apenas a pasta aberta com o jornal saindo.
Outra coisa que o Mario Magalhães, autor do livro Marighella – o Guerrilheiro que Incendiou o Mundo, onde fui entrevistado, me perguntou se eu lembrava quantos tiros eu achava que foram dados. Eu respondi que foram sete – três por trás, dois pela frente e um exatamente no peito, a curta distância.
Os tiros foram dados por duas pessoas a 45 graus do fusquinha. O fatal passou pelo vão do vidro ou pela porta aberta e pegou o tórax dele.
Todo mundo tinha medo do delegado Fleury. Basta dizer que em nenhum momento ele tirou os olhos da gente. Eu bati apenas 3 fotos com flash em uma câmara rolleiflex. A Fatos e Fotos publicou imediatamente. A Manchete divulgou em duas etapas. Porque teve o enterro do delegado ferido, da policial que morreu, enfim, toda redação estava mobilizada para estes desdobramentos também.
Dois ou três dias depois, o Ivan Alves, que era o chefe da redação, conseguiu uma entrevista com o Fleury para falar sobre o caso e ele, novamente, não se deixou fotografar. Quando vi a reportagem, questionei o Ivan, que era o meu amigo. “Pô! Ivan, isso aqui é tudo inverdade”. Ele respondeu: “você fica quieto por eu gravei a entrevista e foi isso mesmo que ele falou.
* Matéria publicada no Jornal Unidade, edição 364. Foto.: André Freire