Logo do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo
Logo do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo
Logo da Federação Internacional de Jornalistas
Logo da Central Única dos Trabalhadores
Logo da Federação Nacional de Jornalistas

Flávio Andrade, um guerreiro contra a ditadura, presente hoje e sempre

Flávio Andrade, um guerreiro contra a ditadura, presente hoje e sempre

Em Barra do UNA , no litoral de São Paulo, para onde  foi levado pela família para que pudesse ver o mar, Flávio  Andrade libertou-se de intenso sofrimento no dia 24 de dezembro de 2021. Foram nove anos anos acamado, uma condição dolorosa para quem sempre desenvolveu uma fervilhante atividade, seja no jornalismo ou no campo político. Tomamos conhecimento de sua morte por uma publicação de sua sobrinha, a cineasta Petra Costa, divulgada no Tweeter e reproduzida no grupo da diretoria do Sindicato dos Jornalistas. A informação divulgada no grupo era “Faleceu Flávio Andrade, aos 70 anos.Foi um combatente da esquerda brasileira,um dos fundadores do grupo trotskista Em Tempo. Participou ativamente da reconstrução do movimento estudantil de Minas Gerais nos anos 70, quando toda a esquerda estava presa ou no exílio. Com a irmã Marília fundou importante gráfica.
Também adquiriu a Gazeta de Pinheiros e da Editora Brasiliense, o Leia Livros. O Em Tempo era um jornal impresso no formato standart inicialmente, enquanto outros jornais da esquerda eram, em geral, tablóides.
Havia entre os jornalistas e colaboradores, militantes do grupo trotskista Democracia Socialista, a DS, cujo teórico no plano internacional era Ernest Mandel.
O Em Tempo, do qual Flávio foi editor, junto com Virginia Pinheiro, sua mulher e sempre companheira de todas as horas, foi um jornal aguerrido e corajoso. Denunciava tanto os horrores da ditadura quanto divulgava as conquistas dos trabalhadores e as ações corajosas da resistência e os debates na política internacional. Dali surgiram várias lideranças que tiveram, posteriormente, papel importante nos governos populares. Tanto no plano nacional como em vários estados, a exemplo de Raul Pontt, Juarez  Guimarães, Jorge Batista, Betinho Duarte, entre muitos outros.

Depois do exílio, o acolhimento no Em Tempo

Eu comecei no Em Tempo por minha iniciativa. Tinha voltado do exílio, mesmo sabendo que corria risco,  e quando me caiu nas mãos um exemplar, logo pensei: é nesse aí que gostaria de colaborar. Falei com Virgínia Pinheiro que eu não conhecia, e ela prontamente concordou. Comecei escrevendo sobre a Venezuela de onde eu tinha vindo, exilada, depois do sangrento golpe no Chile em 1973,Era uma matéria sobre petróleo, já que era um dos grandes países produtores  e integrava a OPEP, Organização dos Países Exportadores de Petróleo que, na época, mandava e desmandava nos preços do produto. Mas, nesse artigo comecei citando  o romance de Rómulo Gallegos , o maior escritor venezuelano e seu livro Poço numero 1,onde  se pergunta o que é um grande companhia de petróleo.

Depois disso fiz várias matérias e, a convite de Flávio Andrade me tornei jornalista responsável pelo Em Tempo e me senti muito honrada pela confiança. Flávio e Virgínia eram os comandantes do projeto. O jornal ficou muito conhecido pela combatividade e pelos debates em torno dos rumos da esquerda no país. Apoiou no final da década de 70, as greves dos metalúrgicos do ABC do qual se tornou um dos principais porta-vozes. E contribuiu decisivamente para a formação do Partido dos Trabalhadores. Flávio era  Inteligente, decidido, não media esforços para cumprir seus objetivos, sempre em defesa de uma sociedade  justa, sem iniquidades nem desigualdades. Era o que no grupo de wzap do Sindicato dos Jornalistas, um companheiro denominou de intelectual orgânico, de acordo com o conceito de Gramsci. Flávio formou-se em Economia da Universidade Federal de Minas Gerais e onde lecionou  antes de vir para São Paulo.
Em 1978 , o Em Tempo publicou em manchete uma lista de 233 torturadores,edição histórica de grande repercussão; em 1980 outra lista completava a relação dos agentes do Estado  que torturavam  e matavam presos políticos. 

Com o movimento dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo, o jornal dedicava várias páginas à luta dos trabalhadores que da reinvindicação econômica inicial passou a ser  o símbolo da luta pela derrubada da ditadura no país.
O jornal, por sua postura firme era perseguido e queimado em bancas. E um dia quando fui à redação que funcionava, na época, na Rua Francisco Leitão, em Pinheiros , encontrei a parede lateral toda pichada, em letras garrafais com a ameaça “Morte aos comunistas”. Quem assinava era o CCC-Comando de Caça aos Comunistas.

Além dos ataques em São Paulo, Betinho Duarte, então um dos responsáveis pelo Em Tempo em Belo Horizonte relatou na Comissão da Verdade deste Sindicato que a sede do jornal foi invadida, máquinas e arquivos foram destruídos por grupos paramilitares, certamente a mando dos ditadores de plantão.

Greves dos metalúrgicos e formação do PT

Escrevi várias matérias sobre a greve dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo:criação da Comissão de fábrica da Ford, a Comissão chapa branca que a empresa Volkswagen pretendia criar e que denunciamos, as assembleias  com milhares de trabalhadores em Vila Euclides, as greves nas grandes empresas automobilísticas e nas pequenas, fabricantes de autopeças, a prisão de Lula, prisões de trabalhadores nos piquetes, as panfletagens nas portas de fábricas, a intervenção decretada no Sindicato dos Metalúrgicos pelos militares. O centro político do país passou a ser São Bernardo do Campo, cujo prefeito, o jurista Tito Costa,apoiava o movimento. 

Mulheres no apoio aos metalúrgicos

Uma dessas matérias focalizava as mulheres dos metalúrgicos que realizaram uma passeata pedindo a volta das negociações com os empresários que tinham estabelecido uma linha dura e não queriam saber de diálogo: os trabalhadores  estavam há 40 dias em greve. Na Igreja Matriz de São Bernardo, a Policia Militar cercava a passeata e uma coronel quis comandar a direção do movimento, levando as mulheres  a se dirigirem para o lado de trás da Igreja onde as ruas eram mais esvaziadas. Marisa Leticia, então mulher de Lula, que comandava a passeata, deu um drible na coronel e no coronel da PM e se dirigiu para as ruas principais da cidade de São Bernardo. Foi um dia marcante com apoio da população e de lideranças de trabalhadores.  Na verdade , a luta inicial que era pela  questão econômica, salarial  se transformou em luta contra a ditadur a .Esta matéria sobre as mulheres foi publicada no Em Tempo e depois transformada  em um livreto elaborado por Elizabeth Lobo,

Uma matéria minha publicada no Em Tempo foi distorcida por setores certamente paramilitares e distribuída, com texto falsificado e o logotipo do Em Tempo  nas manifestações. Uma outra matéria de destaque foi quando vários órgãos de  imprensa, nacionais e internacionais  se dirigiram à empresa Volkswagen. A TV  Globo anunciava sistematicamente  que a empresa  não estava parada. Negociamos na portaria  a entrada do Em Tempo, da Folha de São Bernardo, jornal da cidade e da imprensa nacional e internacional presente no local.  Conseguimos entrar,  liberados  pela assessoria de imprensa da empresa que, aliás, era integrada por meus companheiros de faculdade. Eles pretendiam que nós ficássemos na sala de imprensa, mas ao adentrar na empresa nos espalhamos e todos viram que, de fato, a fábrica estava totalmente parada, trabalhadores em gr eve e um  deles, que havia entrado  dormia em cima de uma máquina. Esta matéria , solicitada por Flávio,  foi publicada no Em tempo sob o titulo  “O dia em que a imprensa invadiu a Volks”.  Mas, ainda assim, o repórter da TV Globo deu, no Jornal Nacional,  a informação mentirosa divulgada pela assessoria de imprensa em  nota oficial de que 95% da empresa estava funcionando. Foi desmentido pelos demais jornalistas presentes, entre eles Francisco Malfitani e Ricardo Kotscho, que demostraram indignação com a mentira deslavada.

Nas Comissão da Verdade, depoimentos sobre perseguição ao jornal

A história do jornal Em Tempo , as perseguições sofridas e a coragem de Flávio Andrade, seguindo em frente com suas convicções, apesar das ameaças,  ficaram registradas na Comissão da Verdade do Sindicato dos Jornalistas, com a participação de Virgínia Pinheiro, Flamínio Fantini e Betinho Duarte que veio especialmente de BH para prestar o depoimento. Virgínia era mulher de Flávio, tinha participação ativa e conjunta  na luta contra a ditadura e também na direção do Em Tempo. Outro depoimento sobre o Em Tempo foi na Comissão da Verdade da Câmara Municipal de São Paulo onde participei junto com o Guto Camargo que foi presidente do Sindicato dos Jornalistas e atualmente também dirigente da FENAJ sobre a imprensa alternativa da época.
Além da repressão e ataques contra o Em Tempo, em algumas bancas como uma na Praça da República tinha um aviso: ” não vendemos jornais da imprensa alternativa”.  Certamente, seus  donos estavam preocupados com as queimas dos jornais  realizadas nas  bancas contra o Em Tempo. 

Militante e pé de valsa

Mas, Flávio nunca arredou pé de seus propósitos  e nunca se intimidou com ameaças. Era sério em sua atividade política e como  diretor do jornal. Mas não era uma pessoa sisuda. Era alegre, gostava de dançar  e sempre, junto com Virgínia e Marilia, sua irmã,  reunia muitos amigos na comemoração de seu aniversário. Certa vez, numa dessas comemorações, Flávio, um gentleman , dançou com várias convidadas e, entre elas, estava eu. Aprendi a minha primeira lição de então dançarina fracassada com o Flávio. Como eu era desengonçada e queria  determinar o ritmo para meu parceiro, ele observou com bom humor: “Olha aqui, em matéria de dança quem comanda é o homem”. Foi muito engraçado, pois Flávio também era defensor dos direitos das mulheres. 

Um episódio divertido com apoio do Flávio foi uma viagem a Belo Horizonte. Alguém inventou de fretar um ônibus e passar um fim de semana em BH.   Parecia um ônibus de escolares, com muitas palhaçadas para desanuviar o clima de repressão da ditadura. Na capital mineira fomos muito bem recebidos e ficamos hospedados em casas de amigos de Flávio, da Virgínia e de alguns jornalistas que tinham família em BH.  Na excursão estavam jornalistas tanto do Em tempo como do Leia Livros.

Assim era Flávio Andrade. Sério, militante firme em suas convicções, generoso e sempre solidário, alegre e, quando podia,  também festeiro.  

Homenagem ás meninas e meninos de Ibiúna

A ultima vez que vi Flávio Andrade foi em uma homenagem aos estudantes presos em Ibiúna, décadas depois, Eu também era uma das que hoje nos chamam de meninas de Ibiúna e representava os estudantes da Faculdade de Jornalismo Cásper Líbero no Congresso da União Nacional dos Estudantes-UNE -liquidado pela Força Pública, em 1968 quando acabamos todos presos.

Tempos depois, soube que ele tinha tido um AVC e estava acamado. E Marília, irmã de Flávio, quando voltávamos de um jantar com a Virgínia e o Betinho Duarte, passando defronte ao apartamento onde Flávio morava, perguntou se eu queria vê -lo. Eu disse com dor no coração que não queria não, pois eu o conheci cheio de vida, decidido e não queria sentir aquela tristeza de ver o Flávio nessa condição melancólica, acamado.

Comoção entre os jornalistas e lideranças

No Sindicato dos Jornalistas, sua morte foi muito comentada, bem como a importância do jornal Em Tempo.
Estevam Pom assim se manifestou: “O Em Tempo foi dirigido por ele (|Flávio) e se tornou um dos mais importantes jornais da imprensa alternativa do pais que surgiram durante a Ditadura Militar e a combateram bravamente, Flávio Andrade, presente !
Paulo Zocchi, ex- presidente da Sindicato dos Jornalistas,e atualmente dirigente da Federação Nacional dos Jornalistas -FENAJ- informou que passou dias enfurnado na gráfica Joruês que Flávio, Virginia e Marília tinham criado,  fazendo o jornal O Trabalho e panfletos de todo tipo entre 1984 e 1990, mais ou menos”.
 Alexandre Linares, também da diretoria do Sindicato dos Jornalistas informou: “Eu fui na gráfica uma vez. Tinha uns 15 anos.Eu era assistente de redação no jornal 'O Trabalho' e fui levar as heliográficas da revista teórica 'A Verdade'. Fui muito bem tratado pela equipe”.
Rose Nogueira, diretora do Grupo Tortura Nunca Mais -SP que também foi do Conselho de Ética do Sindicato dos Jornalistas, referiu-se à coragem de Flávio ao  publicar listas de torturadores.

Virgínia Pinheiro, mulher de Flávio, mãe de seus filhos,  Felipe e Julia ,enviou-me a manifestação de Frei Betto sobre a morte de Flávio: “Virgínia  no jornalismo querida. Deus o acolha em seu infinito amor, Ele viveu plenamente o Natal.E uma vida militante admirável.Meus sentimentos a seus filhos”.

A Fundação Perseu Abramo também informou sobre a morte de Flávio:” participou ativamente da reconstrução do Movimento Estudantil de MG nos anos 70, quando quase toda esquerda estava presa ou no exílio. Em 1978 jovem professor, demitiu-se  da Universidade Federal de Minas Gerais, junto com sua companheira Virgínia Pinheiro. Foram para São Paulo, onde criaram o jornal Em tempo. Cobriram ali intensamente as greves no ABC, Lula e  os movimentos que levaram à queda da ditadura”.

Vários dirigentes políticos e de movimentos sociais também se manifestaram a exemplo de Raul Pont que afirmou ” O Em Tempo foi um jornal de luta contra a ditadura na perspectiva da classe trabalhadora. Sua participação foi decisiva para garantir que o Em Tempo assumisse editorialmente o projeto do Movimento PROPT. Perdemos um grande companheiro, com profunda dedicação, militante e grande parceiro, fraterno, leal e solidário”.

Juarez Guimarães :”Saído de uma família que frequentava os círculos restritos do poder e da riqueza, sua trajetória lembra a de Caio Prado Jr. Para os que com ele  conviveram, nunca se flagrou um gesto de preconceito ou revelador de privilégio. Guardamos dele a memória de uma inteligência aguda, uma certa ânsia de rigor, no sentido de que a cultura do socialismo democrático em tempos difíceis requer também sempre uma vontade realista. Obrigado companheiro Flávio, por tudo que construiu e que continua em nós”.
Carlos Henrique Árabe ” a ousadia de Flávio,  outra de suas características, se lia no jornal que enfrentava a ditadura com o listão dos torturadores, com a história da esquerda brasileira, com os debates sobre o caráter do Partido dos Trabalhadores e sobre o seu programa”. “Sua militância revolucionária foi e é um exemplo para nossas próprias trajetórias”.

Camilo Vanucchi historiou vários fatos da vida de Flávio. E referindo-se à visita que Flávio fez ao Chile no início da década de 70 afirmou: “A experiência chilena o (Flávio) fazia vibrar.Fundador do Partido Socialista do Chile, Salvador Allende, era não apenas o primeiro chefe de Estado marxista-leninista eleito democraticamente na América Latina, mas também o primeiro a demostrar que seria possível chegar ao poder e implementar um governo socialista por meio do voto, sem a necessidade de golpe ou guerrilha”. Infelizmente, como se sabe,  a experiência do socialismo democrático acabou em uma intervenção sangrenta dos Estados Unidos com apoio da ditadura brasileira.

Cinzas na Mata Atlântica

 Virgínia, que estava em Barra do Una, quando ele faleceu me contou  que, nesse momento, uma revoada de pássaros passou sobre a casa onde Flávio  estava, certamente anunciando sua  morte  como um sinal de sua libertação daquele intenso sofrimento.
Flávio foi cremado e pediu que suas cinzas fossem espalhadas sobre a Mata Atlântica.   Até  para sua morte, Flávio assumiu  a militância, desta vez  na defesa do meio ambiente, hoje tão maltratado pelas autoridades atuais sem compromisso com a Nação.

Flávio, sua vida e obra está inscrita para sempre na história deste país, ser humano exemplar, revolucionário, generoso e solidário. 

Vilma Amaro
diretora de base da Regional ABC do Sindicato dos Jornalistas
repórter, redatora e jornalista responsável do jornal  Em Tempo

veja também

relacionadas

mais lidas

Pular para o conteúdo