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‘Cobrir polícia me mostrou engrenagem da sociedade’

Josmar Jozino: ‘Cobrir polícia me mostrou a engrenagem da sociedade’

Caveirinha, como é conhecido Josmar Jozino entre os amigos de longa data, está no jornalismo desde 1984. É um dos repórteres policiais mais experientes em atividade no Brasil. A experiência rendeu a ele três menções honrosas no prêmio Jornalístico Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Quando começou a carreira, o corintiano roxo nem imaginava que chegaria a carregar consigo esta bagagem. Por fim, foi atuando no jornalismo policial que sua visão de mundo se expandiu ao ponto de render três livros sobre a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital).

Os livros publicados por Josmar, que se tornaram obrigatórios para quem deseja conhecer a realidade carcerária e o comportamento das facções criminosas, são “Cobras e Lagartos” (2005), “Casadas com o crime” (2008), em que conta a história de mulheres de presos vinculados ao PCC e outras mulheres encarceradas; e “Xeque-Mate: O tribunal do crime e os letais boinas pretas – Guerra sem fim” (2012), em que encerra a trilogia – nunca planejada por ele.

Os seus dois próximos “filhos” estão nascendo em Itaquera, onde mora e escreve: o “Meio que em off”, sobre os bastidores da sua carreira jornalística, a ser lançado ainda em 2018, e o primeiro trabalho ficcional, intitulado “De mãos dadas”, em que traça um paralelo entre a realidade dos presos comuns e os políticos da operação Lava Jato.

“Eu comecei a entender que fazendo [reportagem sobre] polícia você entende toda a engrenagem da sociedade. Ela [editoria de polícia] te dá uma visão de tudo. Você vai na delegacia do bairro rico e do bairro pobre, aí vê como a polícia trata o pobre, como trata o rico, como a polícia entra numa casa na periferia e como ela entra em uma casa em Moema. Você vai entendendo tudo”, analisa Josmar, com passagens pelos jornais Folha Metropolitana de Guarulhos, Diário Popular (que depois se tornou Diário de São Paulo), Jornal da Tarde e Agora São Paulo e pela tevê Record. Na Ponte, o mestre no jornalismo é colaborador desde 2016.

Confira a entrevista com Josmar Jozino:

Você já disse que era repórter e não escritor. Isso mudou de lá para cá?
Não, continua a mesma coisa. Eu escrevo livros, mas não me considero escritor. Eu acho que o escritor é algo muito mais além, são pessoas bem mais capacitadas e tem o dom de escrever. O que eu posso dizer pra você é que tudo é técnica. Quando eu escrevi o primeiro livro, eu tinha muita dificuldade porque era uma experiência nova, mas depois, conforme você vai escrevendo, você vai formatando seu texto, criando o seu estilo. Eu já tinha isso na reportagem, então você vai se adaptando, se aperfeiçoando. Eu não me considero escritor, escritor para mim é o Jorge Amado, Carlos Drummond, Rui Castro, Érico Veríssimo, Machado de Assis, esses caras são escritores.

Um repórter pode virar um escritor?
Eu acho que é bem pessoal, mas acredito que um repórter que escreve um livro-reportagem é um repórter mesmo. Muitos escrevem livros muito bem, como escritor, mas eu acho que escrevem na essência de um repórter. Eu vejo o Caco Barcellos, por exemplo, mais como um excelente repórter do que como um escritor. Os livros dele estão à altura de um escritor, mas eu acho que ele mesmo se considera um repórter.

Isso tem a ver com a apuração?
Sim, acho que o livro-reportagem é a saída para o jornalista. O jornalismo vem dessa crise danada, no Brasil e no mundo, e o livro-reportagem é uma saída, pois é uma reportagem bem mais completa, bem mais ampla, sem interferência de editor ou linha editorial.

De onde surgiu a ideia do primeiro livro e como foi escrevê-lo?
Foi um pouco traumático. Eu trabalhava no Diário Popular e chegou uma carta lá dizendo que eu estava ameaçado de morte pelo PCC. Aí o jornal me afastou no mesmo dia e eu fiquei em uma quarentena lascada. Nisso um grupo de amigos me falou “por que você não escreve um livro sobre o PCC?”. Eu fiquei andando com escolta uns quatro meses, queriam que eu fosse para a Europa ou para os Estados Unidos, mas eu não quis ir porque meu pai estava doente, então eles resolveram colocar escolta 24 horas na minha cola. Aí eu pensei “ah, vou ter que fazer alguma coisa”. Aí pensei que a sugestão era boa e comecei a escrever o livro. Esse foi o período em que eu tive mais contato com as mulheres dos líderes do PCC, que foram a base de fontes do meu livro. Comecei a frequentar a casa delas e colher as informações. Foi assim que eu escrevi o livro. Ao mesmo tempo, o PCC tinha escrito uma carta dizendo que jamais tinham ameaçado a mim ou outra pessoa, que a facção estava sendo usada como bode expiatório. Eu demorei entre 8 meses e 1 ano para escrever o livro.

Como essa relação foi construída?
Começou por meio das reportagens na Casa de Detenção e nas delegacias. Era um período muito turbulento na década de 90, um período de muitas rebeliões, principalmente lá no Carandiru. Eu cheguei a fazer centenas de reportagens sobre o Carandiru, eu entrava lá e tudo. Mesmo quando não tinha pauta, eu ia lá e voltava com manchete de jornal. Não era raro isso não, era frequente. Um dia eu fui cobrir uma rebelião, os funcionários disseram que um preso estava armado e havia ferido o pé de um agente penitenciário durante uma tentativa de fuga, e eu fiz a matéria assim e todo mundo fez também. No dia seguinte da matéria, uma mulher ligou na redação e queria falar comigo. Eu atendi e ela me falou que era mulher de um preso da Casa de Detenção. Ela também disse que a minha matéria estava toda errada e que nenhum preso estava armado, quem estava armado era um funcionário e esse funcionário que tinha atirado em um preso. Esse preso era o marido dela, que estava sob escolta no hospital do Mandaqui [zona norte da cidade de São Paulo] e o funcionário que atirou no próprio pé.

O que aconteceu?
Fui lá pra checar e era verdade mesmo, o marido dela estava sob escolta. Ela desceu, conversou comigo e contou tudo. No outro dia saiu a matéria redondinha, corrigida. Só eu e uma repórter do Estadão fomos lá, mas a minha saiu mais completa, a mulher do preso gostou mais da minha matéria e se identificou mais com o meu jeito. Essa mulher virou minha fonte, pegou confiança em mim. Isso foi mais ou menos em 1996 e 1997. Depois que saiu essa matéria, ela me apresentou para outras esposas. Lembro de uma reunião na Pastoral Carcerária com elas, todas as mulheres desses presos que ajudaram a fundar o PCC, e foi assim que descobri que havia uma facção enraizada no sistema prisional.

Como você entrou no jornalismo policial?
Não foi uma escolha minha. Quando eu entrei no jornalismo, nem sabia que ia ser no policial. Eu comecei ao contrário, em vez de eu começar na reportagem, comecei na edição. O primeiro jornal que eu trabalhei foi na Folha Metropolitana de Guarulhos. De lá fui pro Diário Popular e fiquei um tempo fazendo cidades, educação, administração… Como eu trabalhava em um período de largar o turno quase na madrugada, eu deixava os relatórios para o editor de polícia. Ele pedia para deixar os relatórios, mas eu deixava a matéria pronta, aí ele gostou e achou que eu tinha jeito para polícia. Ele me convidou para ir para a editoria, só que a editora geral não gostou. Ela queria que eu ficasse lá, mas eu fui para ter essa experiência, fui e acabei ficando. Foi assim que eu comecei, mas não foi uma escolha minha.

Estranhou a mudança?
Eu acabei gostando, porque eu comecei a entender que fazendo [reportagem sobre] polícia você entende toda a engrenagem da sociedade. Ela [editoria de polícia] te dá uma visão de tudo. Você vai na delegacia do bairro rico e do bairro pobre, aí vê como a polícia trata o pobre, como trata o rico, como a polícia entra numa casa na periferia e como ela entra em uma casa em Moema. Você vai entendendo tudo. Você entra na cadeia e vê quem é que fica preso, quem que não fica, quem tem dinheiro para pagar advogado e quem não tem, ela te dá uma visão geral. Ao mesmo tempo eu não sei se é um trocadilho, mas é até hoje a editoria mais marginalizada, menos valorizada. Porém hoje, de seis dias na semana, em cinco os telejornais são abertos com editoria policial.

Você fez mais dois livros, depois do “Cobras e lagartos”, e acabou virando uma trilogia sobre o PCC. Quado decidiu fazer os outros?
Eu nunca pensei nisso de trilogia, nunca passou pela minha cabeça. Se não me engano foi o Bruno Paes Manso que chamou pela primeira vez assim. Na minha cabeça nunca pensei em fazer três livros. Eu quis fazer um segundo livro para contar as histórias dessas mulheres que me ajudaram, que eram minhas fontes, com as quais eu criei amizade e frequento suas casas. São mulheres que gosto e prezo muito. Elas não têm nenhum envolvimento com o crime, elas simplesmente tiveram envolvimento com pessoas do crime, mas não são criminosas, e eu quis contar a história de algumas delas. Como o livro é mais amplo, acabei contando a história de outras mulheres, muitas delas que entraram no crime por opção, por exemplo. Eu acho que é um livro muito humano, tem muitos relatos tristes. A mulher em situação de prisão é abandonada. O parceiro a larga, arruma outra na rua e já era. Agora a mulher, mostro isso no livro, que visita o marido é fiel mesmo, chamada de guerreira. Tem histórias muito humanas de presas que foram separadas dos filhos, que tiveram os filhos na cadeia… Tem relatos muito tristes mesmo. Na parte da humanização, eu acho que ele é o mais forte dos três.

Josmar Jozino, na época de Diário Popular, com as armas em mãos: bloquinho e caneta. Foto: Arquivo pessoal

E como surgiu o “Xeque-mate: O tribunal do crime e os letais boinas pretas – Guerra sem fim”?
Quando eu estava no Agora São Paulo, teve uma guerra velada com o PCC e a Rota [Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, considerada “tropa de elite” da PM paulista], todo dia tinha morte dos dois lados. Teve um secretário maluco que assumiu a pasta da Segurança, ele deu carta branca pra Rota investigar o crime organizado. A tropa, em vez de prender muitas pessoas, executou. É difícil provar isso, mas quem é repórter sabe que é execução. E o PCC saiu por aí matando policiais que não tinham nada a ver com esse conflito, muitos trabalhavam em outros batalhões ou internamente. Fuzilaram uma policial na zona norte, por exemplo. Foi uma vingança. Procurei vários casos e vi que tinha que fazer um livro sobre esses casos e assim eu já falo que o culpado de tudo isso era esse secretário de segurança que me perseguiu durante muito tempo. Ele falou que eu era do PCC, que eu era da sintonia da imprensa, que eu era o jornalista da facção criminosa… No fim, ele não provou nada contra mim. Nem podia provar mesmo, porque eu nunca fui nada disso que ele falou. Aí escrevi esse livro em homenagem a ele. Não coloco o nome dele, mas ele sabe que é ele.

Como é essa linha tênue entre a sua relação com a polícia e com o crime?
Esse secretário não gostava de mim porque dizia que eu fazia matéria só pró-preso, mas ele estava muito mal informado. Eu cai no grampo várias vezes, não porque eu estava grampeado, embora eu não duvido que me grampearam clandestinamente, mas eu tinha contato com muitos advogados ligados aos presos do PCC, falava muito com eles. E às vezes até preso me ligava. Acaba que o preso te procura, o advogado te procura, o promotor te procura. O promotor me procurava para passar matérias de alguma investigação que ele estava fazendo. O advogado procura porque quer denunciar alguma coisa que está acontecendo no sistema. O preso procura porque está se sentindo oprimido, não vai me ligar para falar que vai fazer um assalto ou fugir. Esse secretário é um idiota. O preso liga para a gente quando está sendo torturado, quando os direitos dele estão sendo violados, não estão sendo respeitados, é por isso que ele procura a imprensa.

E como lidava com esses telefonemas?
Sempre que me procuravam, eu ia checar a informação. Caso fosse verdade, a matéria era publicada, mas mesmo assim não era por vontade minha. Sempre fui funcionário onde eu trabalhei, então tinha uma linha hierárquica, com editores e diretores do jornal, não era eu que determinava. Como repórter, cumpria a minha função de checar se aquilo era verdade e, se fosse, fazia a matéria, mas a decisão de publicar não era minha. Para eu sair com o carro e ir para a porta de uma cadeia, tinha que preencher uma autorização, não ia porque eu queria. O secretário não tinha essa visão e achava que minhas matérias eram só pró-preso. Mas as minhas fontes eram agentes penitenciários também. Toda vez que o crime mata um agente penitenciário, o Josmar estava lá fazendo matéria do mesmo jeito que acontecia quando um preso era torturado na cadeia. Eu nunca morri por causa dessa imparcialidade, que é obrigação do repórter que tem ética. Então eu fazia matéria de todos os lados. Quando a polícia executa um cara, eu faço matéria. Quando um PM é brutalmente assassinado, eu faço matéria. Do mesmo jeito, com a mesma vontade, com a mesma ética e com o mesmo profissionalismo. Eu posso ter fonte do crime, eu posso ter fonte de todos os segmentos. Quanto mais fonte eu tiver, mais completo eu vou ser. Era isso que o secretário não entendia.

Dá para cobrir segurança pública sem pensar em direitos humanos?
Eu acho que tá tudo interligado. A bancada da bala, nos anos 70, e a polícia, que é resquício da Ditadura militar, criaram um discurso de que quem defende direitos humanos defende o bandido. Agora está melhor, mas há 20 anos era mais forte ainda. É impossível você fazer uma reportagem policial e não lidar com direitos humanos. Você está vendo o policial desrespeitando os direitos humanos, o cara dá um tapa no preso na sua frente, você vê o policial deixar o preso em pé atrás da porta por 12 horas… Então, não tem como fazer uma matéria dessa sem escrever isso. Está tudo relacionado, não só nas matérias de polícia. Quando você cobre cidades, entra em um hospital e vê as pessoas naquele estado, isso é uma violação aos direitos humanos, não é uma violação ao bandido não, é uma pessoa que paga os impostos sem retorno. O cara que pega o trem aqui em Itaquera, que é uma porcaria, é uma violação aos direitos humanos.

Registro da entrevista com Luiz Carlos Prestes.  Foto: Arquivo pessoal

O seu quarto livro se chama ‘Meio que em off’. É um livro de memórias da sua vida? Por que esse nome?
Não deixa de ser um livro de memórias. Quando eu trabalhava no Jornal da Tarde, o Fernando Molica, que era da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), me ligou. Ele produzia uma coletânea que se chamava “50 anos de crime” e aí ele tinha escolhido umas 6 matérias minhas da época do Diário Popular, tudo sobre o crime organizado. Aí ele falou quais eram as matérias e pediu para eu escrever um making of. Aí, beleza, eu me despedi dele e falei “puta merda mano, o cara da Abraji me ligou aí, disse que tá lançando uma coletânea sobre os 50 anos de crime no Brasil e pediu para eu escrever uma coisa meio que em off, se é meio que em off, para que que é para eu escrever?” [in off é um jargão jornalístico para informações passadas por um entrevistado com o gravador desligado]. O repórter Bruno Tavares, que sentava do meu lado, falou “mas você é burro, mesmo, não é meio que em off, é making of, para você escrever os bastidores”. Aí foi uma gozação total na redação. E eu falei que um dia escreveria um livro com esse nome. Eu estava na Record quando comecei a escrever, esse livro já tá pronto tem mais de um ano. Ele está com a Editora Letras do Brasil.

Qual é a história mais marcante desse livro?
Tem muitas histórias tristes, mas tem casos engraçados – a maioria, acho. Por exemplo, quando eu trabalhava no Diário Popular pegou fogo no prédio da redação. Estávamos eu e um colega no plantão, tinha um monte de viatura passando, aí falei para o outro repórter: “Ô Reina, está passando um monte de viatura de bombeiros, você não quer dar uma checada?”, aí ele checou e depois de uns 10 minutos falou: “Jotinha, chequei lá, mas não é nada não, é um princípio de incêndio na Major Quedinho, 28”. Aí falei: “É aqui caralho!” [risos]. Quando a gente desceu, a imprensa toda estava lá fotografando. A gente, trabalhando no jornal, tomou o furo na própria redação. Esse é o capítulo de abertura do livro. Mas tem outras histórias. Aí tem a história de um estagiário que foi apurar uma notícia policial num distrito da zona leste, mas o delegado não quis passar os dados do B.O. [Boletim de Ocorrência] e ele mandou o delegado enfiar o B.O. naquele lugar. Depois esse estagiário virou um grande repórter. Não posso dar muitos detalhes para não perder a graça, mas aí eu vou contando detalhes de todos os jornais até o último, que foi na Record. Lá foi onde eu presenciei a briga de dois amigos, dois grandes jornalistas, eu chamo um de Coxinha e outro de Calabresa, porque um defendia o impeachment da Dilma e o outro era petista, chegaram a quase trocar socos. Desde o meu início no Diário Popular até o meu final na Record eu vou contando. O livro deve ficar pronto esse ano ainda.

Da época em que você começou para cá, quais as maiores diferenças na cobertura policial?
Mudou muito, são dois extremos. Na minha época, quando eu fazia reportagem policial no Diário, a gente pautava todo mundo, nos anos 1990, antes de ser vendido para as Organizações Globo. Tinha dia que havia quatro páginas de polícia. Naquela época, quando tinha um duplo homicídio lá na Cachoeirinha [zona norte de São Paulo], a chefia mandava dois repórteres de tão grave que era. Hoje, quando tem uma rebelião em um presídio com 40 presos decapitados, sai meia página de jornal e não tem nem suíte no dia seguinte [suíte é matéria sobre desdobramentos no jargão jornalístico]. Eu acompanhei que a violência evoluiu muito, mas as matérias policiais diminuíram no jornal impresso, pelo menos. Na televisão nem tanto, mas no jornal impresso diminuiu muito. Nessa época, nós éramos 20 repórteres só na editoria de polícia e ainda tinha editor, subeditor, chefe de reportagem, dois fechadores que ajudavam os editores, e três estagiários que trabalhavam cada um 8 horas no ciclo de 24 horas. O jornal não ficava descoberto um minuto, sempre tinha gente. Hoje, se você somar as editorias de metrópole e cotidiano, a editoria de polícia tinha mais jornalistas do que essas duas juntas.

Isso tem a ver com a internet?
Eu acredito que tem muito a ver com a internet, mas acho também que banalizou muito. Um duplo homicídio era uma coisa assustadora. Hoje temos chacinas com 15 pessoas e o jornal sai com dois dias de notícia e depois cai no esquecimento.

Você acha que ainda existe essa diferença entre o tratamento na periferia e outros bairros?
Sim, não mudou nada. Na verdade, acho que só piorou. Na periferia, a polícia é mais violenta, comete mais arbitrariedade. A periferia não tem área de lazer, a educação está falida… A maioria da população não pode pagar um colégio particular para o filho, então as coisas acontecem mais na periferia porque o jovem não tem acesso à educação, ele acaba sendo recrutado pelo tráfico, a polícia é violenta, trata todo mundo de uma forma arbitrária, como não deveria, e isso não é notícia mais. As pessoas não ligam mais se o Josmar de Itaquera está sofrendo algum abuso policial, se entrarem na minha casa sem mandado judicial. Naquela época, acontecia isso, mas ainda tinha a imprensa para denunciar. Hoje, não tem mais a imprensa. Tem sites como a Ponte, mas os grandes jornais mesmo se preocupam só com a notícia na área rica ou com algum caso de muita repercussão, mas a notícia dura dois dias, não tem mais sequência.

Por que o caso da Marielle Franco fugiu dessa padrão?
Porque o caso dela é de muita repercussão. Ela era uma lutadora pelos direitos humanos, tinha todo um trabalho, uma militância, era uma mulher negra, uma mulher que se relacionava com outra mulher e foi morta de uma forma covarde. Marielle era uma mulher que tinha toda uma representatividade, aliás, era representante de vários segmentos da sociedade e foi eleita com milhares de votos, uma pessoa que tinha um futuro brilhante na política. Uma das pessoas que o Brasil tanto precisa. E interesses contrários decidiram acabar com a atividade dela e isso teve repercussão mundial. Não dá para fugir, tem que ter notícia todo dia mesmo, até esclarecer o crime e os culpados serem punidos. Eu acho que também as outras pessoas que morrem na Maré e na Rocinha têm que ter um tratamento na imprensa, têm que ter uma cobertura ampla, mas eu só vejo isso na imprensa alternativa, não vejo na grande mídia.

Caveirinha, no centro da foto, durante cobertura.  Foto: Arquivo pessoal

ocê está escrevendo um livro de ficção. Como surgiu a ideia e o processo de criação?
Foi vendo a prisão dos envolvidos na ‘Lava Jato’ e a prisão de pessoas ligadas à facções criminosas, o tratamento que a justiça dá para um e o tratamento do outro. Eu não defendo nenhum lado, mas me inspirei mais em um personagem do Condepe, que foi acusado de receber uma mesada do PCC. Ele está preso e até pouco tempo não tomava nem banho de sol. Ele errou? Errou, está preso, está pagando. Cinco mil por mês ele recebia. Como jornalista, eu não posso acusá-lo nem defendê-lo de nada, mas ele deve ter pegado no máximo 100 mil reais. Ele está preso em uma cadeia lá que não é brincadeira enquanto outros que roubaram bilhões foram presos, mas demoraram, por causa do foro privilegiado. Alguns usam tornozeleira eletrônica, moram em apartamentos de luxo, em bairros nobres. A minha ideia era mostrar como é a vida de um cara comum, um criminoso comum na prisão e como é a vida desses caras do colarinho branco, desses políticos e empresários ladrões. Aí eu criei uma prisão fictícia, chamada Gozolândia, aí eu mostro como que é. A mesma prisão tem lado A e lado B. Na ala A, tá o pessoal de uma facção criminosa. São presos perigosos mesmo. Os nomes são fictícios, mas os personagens são reais. Muitos fatos são reais também intercalados com alguns ficcionais que eu criei. Eu vou mostrando como é o dia a dia, como é a visita na ala A e como é na ala B, como é a cela em cada uma das alas… Tem um preso lá, na Ala B, do colarinho branco, que se chama Pedro Álvares, aí eu conto como que era a vida dele antes de ir para esse presídio e como é hoje. O livro deve se chamar “De mãos dadas – O Partido do Crime e os criminosos do partido”.

Tem uma data para sair?
Ele ainda não está pronto, estou no capítulo 18 e pretendo fechar com 24 capítulos. Ainda não tenho editora e não sei se alguém vai se interessar em publicar. Para mim está sendo uma experiência muito legal. O livro-reportagem é muito mais fácil de fazer. O de ficção é preciso criar, inventar, pensar mais. Tenho que idealizar um presídio e até na estrutura dele tenho que ter muita imaginação, saber se é possível essa arquitetura que eu criei.

Mas nem nesse momento você que está sendo escritor?
Pode ser que sim, mas mesmo assim eu não me considero. Por que o escritor já tem aquele dom de escrever, eu não acho que sou escritor porque o meu jeito de escrever é de repórter e o meu vocabulário é restrito. Eu vejo esses escritores com vocabulários riquíssimos, que constroem expressões maravilhosas com metáforas e figuras de linguagem. O meu texto é mais jornalístico mesmo, é de repórter.

Durante a sua trajetória, você cobriu além de São Paulo?
Eu cobria mais SP, mas eu já fui fazer matéria no Rio, nos anos 1990. Eu fui numa delegacia de São Gonçalo, um dos municípios mais violentos, onde tem uma concentração grande de policiais que trabalhavam para milícia, policiais que já mataram juízes, e fui fazer uma matéria lá sobre um traficante que tinha morrido em uma favela. Fui avisado antes da polícia. Esse traficante foi morto em uma guerra com o PCC e ele era de uma facção rival lá do Rio de Janeiro. Cheguei antes, conversei com o delegado, conversei com o coronel da polícia de São Gonçalo, avisei que eu ia com um fotógrafo, e o delegado disponibilizou uma viatura para levar a gente na casa do cara. Só que no caminho os policiais civis avisaram que só podiam ir até um determinado trecho, de lá em diante era só a gente. Tudo isso está relatado no meu livro “Cobras e lagartos”. Quando chegamos lá, chegou um fusca vermelho caindo aos pedaços, e eu falei pro fotógrafo: “Lopinho, saímos de São Paulo para morrer aqui no Rio?”, tá relatado isso.

E o que aconteceu?
Aí esses caras eram policiais militres que sabiam que a gente ia lá e foram buscar a gente. Era dezembro, rolava uma festa de confraternização de fim de ano no quartel, que mais parecia uma escola de samba, aquela mulherada de mini-saia, chopp para cá, cerveja para lá. Infelizmente eu não consegui localizar a mãe do traficante porque ela tinha vindo pra SP, mas eu fiz uma grande reportagem lá. Mas eu percebi que, nos anos 1990, a polícia já tinha medo de entrar em alguns lugares no Rio. Era muito diferente de SP. Depois, aquele batalhão [o 7º] foi considerado um dos piores, com maior número de policiais bandidos. Eu fui bem recebido, me trataram bem e tudo, naquela época eu não sei se os policiais já pertenciam a grupos de extermínio, mas futuramente esse batalhão foi considerado um dos piores. Vários PMs foram presos pelo assassinato de uma juíza. E aí eu, no Rio, conversando e fazendo matéria da ligação do PCC com as outras facções, os traficantes do Rio falavam que lá não ia entrar o crack lá, porque onde entra o crack vira bagunça, tem muita morte e dependência. Mas o delegado me disse que o crack já tava começando a entrar no Rio mesmo com a resistência do Comando Vermelho, que é a maior facção de lá. Hoje o crack está enraizado. Naquela época, o Rio já tinha indicativo de violência diferente de SP, porque lá tem várias facções que entram

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