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Audálio Dantas: 85 anos de história e embate incansável

Audálio Dantas: 85 anos de história e embate incansável

Na série de entrevistas com os sindicalizados que fazem a história do jornalismo, Audálio Dantas compartilha suas experiências e memórias de repórter, fala do jornalismo em tempos de golpe, da reforma trabalhista e sobre a importância da categoria participar do Sindicato.

Em mais de oito décadas de vida, seis são dedicadas ao jornalismo nos principais veículos do país. Uma carreira vasta e intensa, dentro e fora das redações. Audálio retomou a direção do Sindicato dos Jornalistas em plena ditadura, em 1975. Enfrentou os militares denunciando a farsa do “suicídio” de Vladimir Herzog, assassinato sob tortura pelos agentes da repressão. Da morte de Vlado, fez nascer o movimento que despertou e fortaleceu a sociedade para derrubada do regime militar.

Graças ao tino do repórter, o mundo descobriu “Quarto de despejo”, da pioneira escritora negra Carolina Maria de Jesus, moradora da favela paulistana do Canindé e catadora de lixo que teve sua obra traduzida para mais de dez idiomas. Como sindicalista, reivindicou reposição salarial para cerca de 10 mil jornalistas de SP, lesados pelos dados falsos da inflação divulgada pelos militares, abrindo caminho para o mesmo embate por outras categorias, como o movimento operário dos metalúrgicos do ABC.

O olhar generoso às causas sociais e a luta aguerrida pelos direitos humanos completam a trajetória de 85 anos de vida do jornalista e escritor alagoano, comemorados no último dia 8 de julho, na sede do Sindicato dos Jornalistas, com o auditório Vladimir Herzog repleto de amigos, familiares, jornalistas e sindicalistas.

Em reconhecimento à atuação pela imprensa sindical e pela comunicação popular, o jornalista foi homenageado com o troféu “Indignação-Coragem-Esperança”, uma escultura de São Jorge customizada pelo designer Roger Matua, com a lança transformada em microfone e o elmo com uma câmera digital. A ideia original é da cartunista Laerte Coutinho, a partir de um desenho criado em 1996 como capa dos cadernos de jornalismo do Projeto Repórter do Futuro, da Oboré Projetos Especiais, uma das organizadoras do evento. Uma escultura foi entregue a Audálio e outra foi entregue ao Sindicato, na redação do jornal Unidade.

Além da Oboré, a homenagem foi organizada pelo Centro de Estudos de Mídia Alternativa Barão de Itararé e pela Agência Sindical, com apoio do Sindicato, da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e do Instituto Vladimir Herzog, entre outras entidades. A expectativa é que, a partir de 2018, a iniciativa se transforme no “Prêmio Audálio Dantas”, para prestigiar os profissionais que se dedicam à comunicação sindical e popular.

Confira a íntegra da entrevista exclusiva, publicada originalmente impressa com versão editada no jornal Unidade. 

Qual a importância do Sindicato e do jornalista ser sindicalizado?

É o que eu digo principalmente desde 1975, quando assumi a diretoria do sindicato de São Paulo. O jornalista, de um modo geral, vem da classe média, apesar disso ter mudado um pouco, não se considera trabalhador no sentido mais apropriado da palavra e acha que sindicato é coisa de operário. Isso está acontecendo agora e os jornalistas se isolam nas redações. Não percebem que a defesa do seus interesses passa por uma coisa que é civilizatória, que é a organização sindical, aquilo que permite uma discussão entre trabalho e capital. Não sendo assim, prevalece a ditadura. Ser sindicalizado, ir ao sindicato significa trabalhar junto com o sindicato, combater os pelegos porque, se eu estou lá, luto por representantes que não sejam pelegos. Só isso já bastaria para dizer que ser sindicalizado é um ato de inteligência. 

Você escolheu ser jornalista ou o jornalismo é que te escolheu, Audálio? 

Eu escolhi e em determinados momentos se inverteu, acho que também fui escolhido. Mas era uma aspiração que tem tudo a ver com a minha preocupação com os problemas sociais desde menino. Minha atuação como jornalista foi sempre, desde o início, na reportagem, e meus principais trabalhos foram voltados às questões sociais em geral.

E digo que também fui escolhido porque, quando comecei na Folha, que tinha três edições, tinha um editor que era da Folha da Manhã, o Mário Mazzei Guimarães. Quando eu tinha uns dois anos de redação, ainda pisando em falso, ele me chamou e disse:”‘olha, vou lhe dar uma missão”, que na hora não recusei porque eu tinha a expectativa de fazer alguma coisa importante. “Você vai para o nordeste para fazer várias reportagens sobre a influência da chegada da luz elétrica no sertão nordestino”. Estava chegando energia elétrica na cidade baiana de Paulo Afonso, que chegaria ao nordeste inteiro e, que, evidentemente iria mudar a região. Fui com muito medo porque tem a questão econômica da energia elétrica. Era muita novidade, mas enfrentei, fiz a pauta e, além disso, trouxe umas dez reportagens. Então, de certa forma, o jornalismo me escolheu.

Entre as suas muitas reportagens marcantes da sua trajetória, quais você destacaria?

Uma das reportagens foi o marco da industrialização do nordeste, que é fábrica de tecidos de Delmiro Gouveia, algo emblemático na região. Foi construída uma fábrica a 17 km de uma cachoeira com aproveitamento hidrelétrico e onde surgiu uma cidade progressista com o mesmo nome, no entorno da indústria no sertão alagoano. Fiz também o outro lado, que era a favelização com a chegada dos migrantes que procuravam trabalho e iam se arranchando em volta do acampamento da hidrelétrica, numa grande favela que depois virou uma cidade importante.

E como era a condição do fazer jornalismo no interior do país nas décadas de 1950 e 1960?

O Marcos Faerman, que foi do Jornal da Tarde, um dos textos mais brilhantes do jornalismo brasileiro, dizia que o repórter é um aventureiro, é um cara que sai em busca da aventura, da história. No meu caso, isso virou uma paixão, tanto é que deixei de lado quase tudo para me dedicar à reportagem e foi isso que fiz durante toda a minha vida, até o dia em que aceitei a candidatura para presidir o Sindicato dos Jornalistas. Para mim, ou é tudo ou nada. Fazer pela metade não dava e minha carreira de repórter praticamente parou em 1975.

Do jornalismo ao sindicalismo

E do jornalismo para ser sindicalista? Como foi a sua vinda para o Sindicato em 1975, para a retomada da direção da entidade em plena ditadura?

O Sindicato estava há 10 anos na mão de grupos que consideravam a discussão da censura como se não tivesse a ver com a entidade, que era só  discutir questões trabalhistas. Quando aceitei, estava convicto de que não era uma carreira sindical, era uma opção política de combate à ditadura. Eu já tinha participado antes da oposição sindical na questão da Lei de Imprensa. Nossa decisão foi a de convocar uma assembleia para formar uma comissão de liberdade de imprensa, em 1967. Fizemos um grande movimento, que terminou com um ato público com duas mil pessoas se manifestando contra a Lei de Imprensa que estava para ser enviada ao Congresso Nacional. Esse ato assustou demais o patronal e também o regime que, na época, ainda não era aquela coisa violenta. E participei da eleição de cargos menores sempre com a perspectiva de que o sindicato deveria ser instrumento de combate à censura e à violência da ditadura.

Cinco meses depois de você assumir a presidência, veio o assassinato de Vladimir Herzog em meio a prisões de vários jornalistas. Como foi encarar aquele momento?

O embate e as ações da ditadura contra o sindicato começaram muito antes do caso Herzog. Começaram imediatamente após a posse da nova diretoria, que foi em maio de 1975. No mês seguinte, nós da diretoria, todos engajados nesse princípio de luta, fizemos um debate sobre censura.

Nós abrimos a diretoria. Tínhamos a chamada diretoria executiva e a diretoria ampliada com a participação de pessoas que não tinham sido eleitas, mas que estavam no Sindicato participando, como Perseu Abramo. E propuseram um debate sobre a lei salarial, uma legislação arrochada que determinava que só se podia fazer a discussão de salários com as empresas uma vez por ano e numa certa data. Nós queríamos a abertura do debate e houve uma adesão, mas não foi muito além porque naquela época os sindicatos tinham muito medo. Havia a adesão de quatro ou cinco sindicatos e estava marcada uma reunião na sede dos Jornalistas quando chegou um recado do Dops chamando o [Antonio Carlos] Félix Nunes, que era da Comissão de Sindicância. A partir daí, a coisa se complicou, saiu da área do Dops e foi para a área do II Exército.

Depois, no começo de julho de 1975, fui convocado pela primeira vez como presidente do Sindicato pelo comandante do II Exército. Eu disse que estava na minha obrigação, como presidente de uma categoria de trabalhadores. A verdade é que estava havendo uma guerra e sou participante dessa guerra. Ficou claro que as coisas não eram como a gente imaginava.

No final de julho, já começou uma ação dos militares contra. Eles falavam que  havia uma imprensa infiltrada pelos comunistas, que havia um projeto do PCB e que tinham que combater. Os militares já tinham derrotado a luta armada e a, partir daí, começaram prisões de várias categorias, até que chegou aos jornalistas, no começo de outubro de 1975. A luta mais forte do sindicato começou aí, não com a morte do Herzog, mas com a prisão do primeiro jornalista, depois do segundo, do terceiro, do décimo primeiro. Foram 12 e cada uma dessas prisões resultou num protesto do sindicato, que distribuía nota, mas ninguém divulgada até que aconteceu o caso do assassinato do Vladimir Herzog.

Podia ser qualquer um porque havia uma lista muito grande de jornalistas considerados comunistas e que deveriam ser presos como aqueles 12. Com isso, conseguimos estancar o projeto que os militares tinham de investir contra a imprensa. A acusação que os militares faziam ao Herzog, que era diretor da TV Cultura, era de que ele foi lá como diretor de jornalismo com a missão do Partidão de começar a formar a efetiva infiltração comunista na imprensa.

Há uma nota do Sindicato, publicada no dia seguinte ao assassinato, que responsabilizava o Estado. Não dizia ‘vocês mataram’ porque isso significaria os militares virem no Sindicato, fecharem tudo e acabarem com o instrumento de luta. Era essa a minha convicção, de que a autoridade era responsável pelo preso que ela mantinha sob seu comando. E na mesma nota convidamos a população para o sepultamento do Vlado. Isso fez com que o sepultamento passasse para a segunda-feira, dois dias depois do assassinato.

Com isso conseguimos o que chamo de despertar de consciência da sociedade. O Sindicato se transformou numa espécie de refúgio de gente de todas as categorias e todas as tendências políticas. O sepultamento já se deu com a multidão de 800 ou mais pessoas. Mais do que isso, a mobilização em torno do culto ecumênico na missa de sétimo dia do Vlado, na catedral da Sé, em 31 de outubro, que foi o ponto de partida para a mobilização da sociedade. Esse fato me fez deixar de lamentar de ter perdido minha condição de repórter.

                                                       

1975 – Audálio Dantas no velório de Vladimir Herzog (Foto/Elvira Alegre) e o
ato ecumênico na Sé (Foto/Agência Estado): Sindicato engajado na resistência à ditadura

 

Depois do caso Herzog, como foi a gestão à frente do Sindicato nos anos seguintes em plena ditadura?

Primeiro, o fato e as repercussões do caso Herzog contribuíram para que os militares recuassem efetivamente. Acabaram as prisões ilegais, em massa. Segundo, houve desdobramentos importantes, a partir de 1977, com o ressurgimento do movimento operário, em São Bernardo do Campo. Para isso contribuiu uma coisa que eu criei e muita gente não ligou até hoje.

Em julho de 1977, descobriram que, em 1973, houve uma falsificação dos dados oficiais da inflação que determinavam o índice salarial na data base das categorias. Um jornal conservador, a Gazeta Mercantil, foi verificar com os economistas e os dados não estavam corretos. O Delfim Netto, então ministro da Fazenda, distribuiu a informação sobre os índices do custo de vida, de uma média de 14% quando, na verdade, era de 24%.

Com base nesses números, fornecidos pelo Dieese, pedimos a apuração dos dados do que seria o nosso reajuste e decidimos reivindicar a reposição das perdas. Isso desencadeou uma ação de outros sindicatos, principalmente nos Metalúrgicos, e isso levou à primeira greve geral, no ABC. Foi um processo que resultou no mais importante movimento de combate à ditadura. Foi esse movimento operário que realmente contribuiu diretamente para a queda da ditadura e, depois disso, veio o movimento pelas eleições diretas, a anistia, e, afirmo sem nenhuma dúvida, que tudo isso começou com o Sindicato dos Jornalistas.

Depois da saída do Sindicato, você também foi deputado federal, em 1978. Como foi esse período de sua vida na política?

Como aconteceu no episódio com o Sindicato, também aconteceu na eleição. Costumo dizer que muita gente me classifica como líder e brinco que sou um líder meio às avessas porque, geralmente, as pessoas vêm e me carregam. Eu sou um sujeito que de repente sigo a manada. Quando terminou meu mandato no Sindicato, foi feito um levantamento nas redações mostrando que minha eleição veio de baixo para cima e novamente foi feita uma proposta de convenção para os votos da sucessão. Tive mais 90% de intenção de voto para uma nova sucessão no Sindicato, segundo esse levantamento, mas não vim para fazer uma carreira de sindicalista.

Eu pensava em voltar para a redação, estava na revista Realidade, e, de repente, apareceu um movimento querendo que eu fosse candidato a deputado federal. Até que ponderei, achei que eu podia continuar minha luta política e acabei aceitando, terminando de vez a minha possibilidade de aventura jornalística porque dediquei meu mandato inteiro ao combate à censura, à violência policial, ao apoio aos movimentos sociais. Nas greves de 1980 e 1981, passei o mandato praticamente em São Paulo para acompanhar o movimento na porta de fábrica e evitar a violência policial. Acho que valeu.

No caso do conflito entre Guatemala e Honduras, na “guerra do futebol”, vou acabou virando correspondente de guerra numa viagem que fazia para o México. E a outra reportagem é a descoberta da Carolina Maria de Jesus.

Costumo dizer que a reportagem que fiz sobre a descoberta dos cadernos com os diários da Carolina Maria de Jesus foi a coisa mais importante que fiz na minha carreira. Não pelo texto que eu escrevi, mas pelos textos que transcrevi do diário da Carolina e a repercussão que isso trouxe com mais uma reportagem de cunho social que eu tinha proposto. Ela é um acontecimento literário que dura desde os anos 1960 e acho que vai continuar cada vez mais. Vai continuar a importância do trabalho que ela escreveu e foi publicado no livro “Quarto de despejo”. Hoje há estudos nas universidades do Brasil e do exterior, e vemos, por exemplo, o Ferrez, que é um produto da Carolina Maria de Jesus, é um expoente da literatura marginal.

Quanto à guerra, eu estava fazendo um roteiro turístico em 1969, do Brasil ao México, pela revista 4Rodas, onde ocorreria, no ano seguinte, a Copa do Mundo. Quando eu e o companheiro fotógrafo Osvaldo Maricato chegamos na fronteira da Nicarágua com Honduras, atravessando a fronteira tinha a notícia no rádio do carro de que a capital de Honduras estava sob bombardeio. Não deu pra voltar porque, mesmo que nós quiséssemos, estava fechada a fronteira com a Nicarágua e El Salvador. E nós nos perguntamos ‘o que vamos ficar fazendo aqui? Vamos bater perna, é isso’. E fomos cobrir a guerra pela revista Veja.

Embates no jornalismo contemporâneo

A reforma trabalhista é mais uma faceta do golpe. Como as mudanças afetam a categoria?  

A reforma atinge a todos e aos jornalistas com mais ênfase porque a categoria vem sendo penalizada há muito tempo, desde a extinção da exigência do diploma de jornalismo, não pelo diploma em si, mas pelo fato de que a obrigatoriedade contribui para a organização dos profissionais. Agora será muito mais precário e num aspecto totalmente nocivo que é a prevalência do negociado sobre o legislativo. A parte mais fraca da negociação quem será? É lamentável, é uma vitória do empresariado que defende a continuidade do golpista Michel Temer na presidência.

O que a condenação do ex-presidente Lula, sem provas, significa para a democracia no Brasil?

É uma miséria anunciada. Desde o início do processo do golpe o que se visava era essa condenação, numa clara providência dos golpistas para evitar a participação do Lula na sucessão presidencial porque a projeção das pesquisas dá a vitória a ele. O fato de ser sem provas não é surpresa depois dos vários outros casos em que pessoas foram condenadas também sem provas. Já houve a prisão coercitiva do blogueiro Eduardo Guimarães e sem nenhuma motivo que justificasse. Numa palavra, é mais um golpe que foi dado.

O que você diria ao jovem estudante de jornalismo ou ao recém-formado que estão querem começar na profissão? Qual a sua mensagem?

Não daria um conselho propriamente porque acho pretensioso. Mas, ao mesmo tempo, devo dizer que, apesar de tudo, continuo acreditando na importância do jornalismo, o verdadeiro jornalismo, como instrumento de defesa da sociedade. O jornalismo que temos hoje no país é um jornalismo de negação do princípio que é básico no jornalismo – a credibilidade da informação. Isso foi sendo perdido ao longo dos últimos anos e, no Brasil, de forma dramática. Temos um jornalismo que, não tendo a censura da época da ditadura militar, contribui para a omissão da verdade da informação.

Não é nada entusiasmante chegar agora no jornalismo, mas seria absurdo dizer que o jovem não deve ser jornalista porque eu sempre acredito na possibilidade da democracia. A democracia é aquilo que pode contribuir para que, aos poucos, tenhamos um jornalismo de verdade. Os grandes empresários da comunicação chegarem a perceber o fato de que a omissão da informação, ou, pior que isso, a falsificação da informação, pode levar à ruina.

Escrito por: Flaviana Serafim – Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo
Fotos: Cadu Bazilevski

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