Eu lembro praticamente de todos os detalhes, ainda é uma história muito difícil de esquecer. Eu estava atrás de uma banca de jornal porque eu senti muito medo quando começaram a cair as primeiras bombas. Os policiais que estavam atirando miravam nas pessoas mais próximas delas, jogaram bombas em grupo a menos de quatro metros, tiros em uma intensidade muito grande… Tinha muita gente na rua. Aquilo me assustou.
A primeira coisa que pensei nem foi fotografar, foi sair dali o mais rápido possível. Procurei me esconder em uma banca de jornal na esquina da Rua Consolação com a Rua Caio Prado, na frente do posto de gasolina. Eu me senti protegido ali: as balas não poderiam me atingir. O problema é que a quantidade de gás lacrimogêneo subiu. Foram muitas bombas, tinha muito gás. Qualquer pessoa ali passava mal.
Na época, eram poucos os jornalistas e fotógrafos que iam com máscara e equipamento de segurança em protestos pacíficos. Não tinha necessidade. Aquele ar das bombas me fez passar mal e me deixou irritado. As pessoas estavam protestando pacificamente, era um ato controlado e, por nada, a polícia tomou essa ação.
Depois das bombas e do gás, saí de trás da banca quando percebi não ter mais nenhuma bomba caindo. Foi quando fotografei a Tropa de Choque que estava atirando nos manifestantes a uma distância longa. As fotos que tenho nem são tecnicamente perfeitas de denúncia. Eu estava muito longe. Lembro bem daquela imagem: era uma foto que não tem estética perfeita, não tem proximidade do assunto tão grande… Tem uma nuvem de fumaça com gás lacrimogêneo, mais atrás, homens fardados enfileirados, apontando a arma na direção que eu estava. Fiz a foto.
Abaixei a câmera e senti o impacto. Foi um tiro que atingiu diretamente o olho. Senti uma dor terrível, muito forte. Saí da esquina gritando, pedindo socorro na Rua Caio Prado sentido Augusta. Estava sangrando muito. Fui socorrido por um professor que me viu gritando, viu o sangue que eu estava perdendo. O Severino Honorário foi meu anjo da guarda para me livrar da situação. Eu poderia até ser atingido novamente porque as bombas e os tiros não paravam. Era uma caçada da polícia com motos, viaturas atrás de pessoas que corriam. A manifestação dispersou e se espalhou, virou um caos. Aí eu não sei detalhar, tinha perdido a capacidade de enxergar isso.
Dali, o professor me carregou por uns 40 minutos a pé. Caminhamos até a Avenida 9 de Julho e, de lá, para o hospital mais próximo, que era o Nove de julho, que fica atrás do MASP. Eu estava perdendo sangue, com dor, sentindo uma sensação de desmaio e enjoo… Foi uma peregrinação terrível. Dali por diante, minha luta é por justiça e reparação.
Agora, quando se completam anos, como esses 5, a gente sempre se encontra. Ele está presente nos atos e manifestações em denúncia do processo. Costumeiramente, visito a escola que ele trabalha, a Reverendo Jacques, no Jardim São Luís, zona sul de São Paulo. Já fiz relato da minha história aos alunos dele. Temos um carinho grande, é uma amizade forte.
Sobre meu processo, sou muito pessimista pela experiência que estou passando. Rejeitado em primeira instância, vai para a segunda, que também nega o pedido de indenização e perpetua a decisão do primeiro juiz. Não bastasse negar, ainda considera que o culpado por perder a visão sou eu. Eu que entrei na linha de tiro do policial. Ele atirou e o culpado sou eu. Minha perspectiva é muito ruim para a justiça ser favorável ao meu processo.
Tenho pensado que, daqui a 10 anos, ainda estarei repetindo o que estou dizendo exatamente agora: fazer denúncia, contestar a legalidade do meu processo. Infelizmente, me vejo nessa realidade. Ao mesmo tempo, é algo que me motiva a continuar lutando. É ver um horizonte ruim e tentar mudar essa história desde agora.
Ainda temos uma polícia totalmente militarizada, de postura ideológica muito forte e clara nas manifestações com pensamentos contrários às suas práticas. Também tenho uma perspectiva ruim nesse sentido. Não sei dizer se teremos esse direito à liberdade de manifestação de fato respeitada daqui a 5, 10 anos. Hoje, não temos.