Não sei a faculdade de Jornalismo que Lúcia Guimarães cursou, nem o ano, mas o trabalho com palavras que ela apresentou no final de um curso, soltas dentro de um vidro transparente, pode ser considerado criativo se foi feito na época em que o concretismo estava em alta e a poesia concreta paginava com claros/escuros as páginas dos jornais. Já vi muita coisa parecida com o rótulo de arte moderna. Não digo se gosto ou não gosto, mas tem vários elementos que o Jornalismo necessita: rapidez na produção, criação de última hora, originalidade e a valorização do uso de palavras que andam virando grunhidos no Twitter, como descreveu José Saramago. Não sei também em que isso desmerece o Jornalismo, porque não sei o que os colegas andam fazendo na faculdade de Física, Química ou Artes Plásticas – e isso não colabora para a tese maléfica de tirar o diploma nem decretar que uma profissão não é uma profissão. Viadutos caem, prédios desmoronam, artes são inexpressivas ou consideradas degeneradas (como aconteceu com os nazistas em relação ao Expressionismo), advogados são corruptos e juízes inconsequentes, e nem por isso achamos que qualquer um que seja bom em matemática, cálculo e criação pode virar arquiteto ou engenheiro. A arte não vale nada como carreira porque uma criança pode rabiscar como Picasso ou Miró, e o Direito, ora, qualquer um que se debruce atentamente sobre as leis e tenha bom senso saberá julgar diante de um processo. E os psicanalistas? É preciso ouvir atentamente e deixar o outro falar porque “parece” que é só isso que acontece num consultório, e ainda por cima com as horas mais caras do planeta. Crianças costumam ir ao psicólogo para desenhar, e isso ele não pode fazer em casa? Demite-se a carreira de Psicologia também. Médico? O pai de um menino condenado a viver menos de um ano não conserva o filho vivo com mais de 20 anos porque se debruçou na doença e garante que entende do assunto mais do que qualquer médico? É possível. Depois, pacientes não morrem? Médicos não erram? O doente não é quem sabe sua própria doença? Para que diploma de Medicina? Ainda se morre de Aids, câncer. A base de tudo Jornalista há 40 anos, formada pela PUC do Rio, com mestrado na Columbia University – que Lúcia clama como uma usina de grandes profissionais – e doutorado na USP com tese em Cinema, eu sei o quanto uma boa escola de Jornalismo pode contribuir para o bom Jornalismo e posso garantir que não vi melhora na área depois que a obrigatoriedade do diploma caiu. Pelo contrário, vi muito político ocupando espaço de profissionais, muito ator e atriz escrevendo e atuando em TV no lugar que caberia a um profissional de Jornalismo, ouvi muita bobagem no rádio e até uma infantilização da profissão por pessoas que não garanto que tenham diploma de Jornalismo, mas acredito que não. O tatibitati hoje é geral e o público privilegiado é agraciado com bobagens porque se supõe que ele não alcance outros padrões. Concordo que as faculdades proliferaram em geração espontânea e caíram de nível na mesma proporção do que acontece em outras áreas. Porque a universidade que há mais ou menos 40 anos filtrava menos de 1% da população, ou seja, a nata, hoje, democratizada, abre as portas indiscriminadamente enquanto as escolas se multiplicam gananciosamente caras. Pagou, entrou. E a educação nunca foi prioridade no Brasil. Não sei a ética que se exige de outras profissões, mas sei que a exigida pelo Jornalismo está na base do jogo: sem ética um profissional não vai muito longe. Não sei se um político que ganha uma coluna em jornal, um arquiteto, um artista plástico que pleiteia uma coluna de artes, um advogado, um músico ou qualquer outro profissional de outra área foca sua ética para o mesmo ponto que um jornalista. Porque a ética do político é com a política e seu interesse no momento, a do artista é com a arte, o músico, com a música, e os arrivistas com o interesse pessoal ou financeiro de agradar aqui e ali, receber daqui e dali. A ética do jornalista tece a própria relação com o entrevistado, do começo ao fim – o foco está ali, na coisa sendo feita e nas suas consequências. Um deslize acaba com uma carreira em segundos porque na raiz de tudo está a credibilidade. Outro nível Concordo plenamente com o ministro Gilmar Mendes, do STF, em que a profissão equivale a de um chef de cozinha, basta a prática. Um cozinheiro tem de ser criativo, experimentado, preparar a ceia com antecedência, cuidar dos ingredientes, produzir uma cena perfeita com paladar, tato e visão. E pode surpreender, provocar nos temperos. Não desmerece o jornalista ser comparado com um chef de cozinha. Desmerece Gilmar Mendes que não entendeu o espírito da coisa. E agora até os chefes de cozinha – como Alex Atala – reivindicam o reconhecimento da profissão. Como disse Lúcia Guimarães, qualquer um pode apertar um botão e enviar uma foto de qualquer lugar, qualquer um pode reportar um acontecimento, um assalto, um engarrafamento e tudo pode se resumir a 140 caracteres como no Twitter. Qualquer um pode perguntar, gravar a conversa e reproduzir tintim por tintim. Mas isso não é jornalismo. Acho que estamos esquecendo o que é uma reportagem, o que é parar para ler uma matéria de cabo a rabo, o que é ser servido com matérias ou entrevistas ou análises que mudam o seu dia, o seu comportamento, a sua forma de ver as coisas, o seu humor, e até mudam o mundo. Acho que estamos esquecendo que era essa a proposta do Jornalismo e é ela que tem de voltar às escolas, seja na Columbia em Nova York, no Rio, São Paulo ou no Piauí. Acabar com o diploma só favorece o vandalismo na área, a vaidade dos aventureiros assinando matérias e colocando rostinhos bonitos com cabelos escovados na televisão. Estimula o mau funcionamento do ensino de segundo grau e a ideia de que qualquer pessoa pode fazer qualquer coisa. Na verdade, pode. Mas profissão é outro departamento. Quanto aos salários baixinhos, concordo que não é privilégio dos que não têm diploma, fascinados com o fato de aparecer e caindo na armadilha dos patrões: paga pouco, mas lança na vitrine para receber de outras fontes, a publicidade por exemplo, assessoria política, quem sabe? Com os jornalistas formados já vinha acontecendo essa manipulação, que piorou com a falta de emprego. Mas isso tem a ver com o Doutor Mercado e não com a fibra de uma profissão. Endinheirados hoje e bem aposentados só os trabalhadores públicos, profissionais liberais estão em baixa. Ninguém aprende jornalismo na escola, mas tenho a certeza de que ninguém se torna um bom profissional só com o título de bacharel. Existe a piada do sujeito que era tão culto, e tinha tantos diplomas, que escreveu no cartão de visitas “bacharéis” sem nunca trabalhar em setor algum. O métier se aprende fazendo, caminhante o caminho se faz caminhando, mas não quebrem a coluna dorsal de um profissional, nem o orgulho de cada vez mais se aprimorar uma profissão. Principalmente num país como o Brasil onde cultura massificada virou moda e aspirar patamares mais altos até pega mal. Lúcia Guimarães é uma grande profissional que dá prazer ler, mas está impregnada pelo espírito e a cultura nova-iorquina que também experimentei. Talvez ali onde os níveis de profissionalismo atingem a estratosfera – e os patamares de aceitação estão dezenas ou milhares de degraus acima do nosso – seja possível um Jornalismo feito por químicos, físicos, nanotécnicos, gente que teve uma escolarização tão superior à nossa que não dá para comparar. Mas estamos no Brasil, onde nossa meta primeira é impedir o abandono no ensino de primeiro grau porque os meninos e meninas não têm sapatos ou porque o pai precisa de mão de obra na roça. E esse Brasil só melhora com bom Jornalismo, feito por jornalistas de verdade. Publicado no Observatório da Imprensa em 14/08/2012 |