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Lula pelo olhar da mídia

Lula pelo olhar da mídia

Marina Amaral entrevista Ricardo Kotscho e José Chrispiniano na Casa Pública, no Rio de Janeiro. Foto: Thiago Domenici/Agência PúblicaA entrevista liderada por Marina Amaral, codiretora da Agência Pública, teve a participação de Ricardo Kotscho, jornalista na Folha de S. Paulo e ex-secretário de imprensa do governo do ex-presidente e José Chrispiniano, o atual assessor de imprensa de Lula.

Marina Amaral – Queria começar perguntando para o Kotscho, que esteve no dia da prisão do Lula, se ele sentiu essa pressão, esse conflito entre os jornalistas e o pessoal que estava com o Lula? E como você, que já foi assessor de imprensa do Lula, vê essa pressão com os jornalistas querendo informações?

Ricardo Kotscho – Foi um dos dias mais tensos que vivi nessa minha trajetória de 54 anos como repórter. Eu acompanhei todas as greves do ABC, que eram lideradas pelo Lula no final dos anos 1970, começo dos anos 1980. Eu vi nascer o PT, a CUT, acompanhei desde o começo. E, realmente, essa sexta-feira, 6 de abril, não é para esquecer, conversei com o Lula logo cedo, fui para o sindicato.

Eu não vi esse conflito com a imprensa porque fiquei dentro o tempo todo, em uma sala que era reservada para os amigos velhos e tal, conversando, antigos sindicalistas que lembravam muito episódios anteriores de outras invasões da polícia lá. Teve uma hora em que eu me senti mais ou menos em 1980, que, por acaso, também foi em abril. A gente estava à noite no Sindicato quando houve uma invasão da polícia. Eu trabalhava na Folha, em uma outra temporada que passei lá, e notei uma coisa que acabei escrevendo no dia seguinte, que era: “Como é que o Lula decide as coisas nesses momentos graves? Como é que age o líder político que era líder sindical?”. E é mais ou menos do mesmo jeito. Na Vila Euclides, que é o estádio onde fazíamos assembleias dos metalúrgicos, o Lula nunca entrava direto para o palanque onde ele iria falar. Ele entrava pela porta principal, atravessava aquele mar de gente, conversava com um, com outro, ouvia e sentia o clima, que, basicamente, era o seguinte: continuar ou parar a greve? Então, quando ele ia falar, falava mais ou menos a média do que ele tinha ouvido, do que o pessoal queria. E aconteceu a mesma coisa nesse dia. Tinha várias salas, salas dos dirigentes do PT, sala com a família, com os amigos, e ele ia falando com um, com outro, e, ouvindo todo mundo, acabou tomando a decisão que ele não se apresentaria naquele dia, naquela hora que o Moro marcou. E os advogados, políticos do PT, estavam negociando com a Polícia Federal.

Os problemas com os jornalistas só fiquei sabendo no dia seguinte. Como eu falei, estava lá o tempo todo e, quando eu saí, estava muito cansado à noite, fui direto para casa. Uma coisa que noto é que sempre houve um conflito, desde o início da história do PT, entre imprensa e os líderes do PT, e que veio se agravando ano a ano.

Eu dei uma sorte que, nos dois primeiros anos do governo Lula, trabalhei como secretário de Imprensa, e não teve uma grande crise com os jornalistas.

Havia uma relação boa não só com os jornalistas que cobriam o Palácio do Planalto, mas também com os donos dos jornais; eu procurava fazer isso, uma ponte entre o governo e a mídia. Uma vez por semana, a cada 15 dias, eu ia para o Rio ou para São Paulo conversar com os diretores de redação e tirar informações deles, o que eles estavam achando do governo, e também dar informações que eram interesse do governo. Eu lamento muito isso que aconteceu porque há uma guerra ideológica e política entre os donos da mídia, os barões da mídia, desde sempre, e o PT. Mas há maneiras de tentar, como vou falar, conciliar um pouco os interesses.

Porque o tempo da imprensa e o tempo do governo são diferentes. Mas é engraçado que lá atrás, no início, muitos jornalistas eram filiados ao PT. Eu nunca fui, nunca entrei em nenhum partido, mas eles tinham lado e a maioria era a favor do Lula, do PT e tal. Hoje eu já não sinto assim. Acho que há uma certa animosidade dos jornalistas com o PT, não só dos patrões.

Marina Amaral – Não apenas dos veículos, mas também os profissionais de imprensa?

Ricardo Kotscho – É. Eu não sei o que leva a isso, mas é uma coisa que dá para notar conversando com os colegas na hora em que eu saí de lá. Tem que encontrar um jeito, sabe? Acho que lidar com a imprensa é mais ou menos como lidar com o Congresso Nacional, eu falava isso. Você tem que falar com o pessoal do PFL [hoje DEM], da oposição, faz parte do jogo político. E a mesma coisa acontece com a mídia. Uma coisa que eu sempre repeti é o seguinte: se você tratar bem a mídia, você vai apanhar, porque os donos são contra, não querem que o PT vença, ele ganhou quatro vezes seguidas. Agora, se tratar mal, é pior. Porque aí os repórteres, o pessoal que está na rua, também se volta contra o partido. Eu tentei, durante algum tempo, fazer isso de tentar conversar tanto com os meus amigos, que conheço todos os veículos, como com os amigos do governo, o Franklin Martins que tinha ficado no meu lugar cuidando da área de imprensa, mas vi que não tinha jeito, era uma coisa inconciliável. Então desisti.

Marina Amaral – Mas o que era inconciliável?

Ricardo Kotscho – Um xingava o outro: “Eu não falo com filho da puta”. Mais ou menos isso, em resumo. Então aí não tem diálogo. E, pelo jeito, está assim até hoje. Tanto é que só recentemente o Lula deu uma entrevista exclusiva para um grande jornal brasileiro, que é a Folha, onde eu trabalho, para a Mônica Bergamo, que, aliás, está fazendo este ano um trabalho maravilhoso com o Lula, que há muito tempo não dava uma entrevista exclusiva; fez com o Maluf na cadeia e com o Zé Dirceu. Estou muito triste com tudo que está acontecendo, não estou vendo muita perspectiva, muita saída. É o pior momento que vejo do país, da política brasileira, sem lideranças, sem interlocutores. Você não tem nem do lado dos empresários, nem do lado dos sindicalistas, nem de lado nenhum. Você não tem mais. Não há uma sociedade civil organizada hoje que possa ajudar o Brasil a sair desse impasse.

Marina Amaral – Chrispiniano, o que você sentiu? Você que acompanhou ali como assessor de imprensa do Lula. Há uma animosidade dos jornalistas contra o Lula ou você sente mais que os jornalistas estavam pressionando porque queriam mais informação e vocês tinham que conter?

José Chrispiniano – Eu acho que tem uma mistura de questões, então vou começar citando um episódio um pouco anterior a esse do sindicato, depois vou para o prático do sindicato. A gente fez uma caravana pelos três estados do Sul do país. E sempre teve, a cada cidade em que a gente foi, episódios de minorias violentas, tentavam impedir os atos, mas a maioria da população, no fundo, não se envolvia, nem de ir nem de tentar impedir. Com alguns dias da caravana, o Zero Hora escreveu um editorial que fazia uma condenação formal da violência, mas dizia que o Lula não deveria ter ido para o Sul do Brasil, onde ele tinha muita oposição. De certa forma, endossava as manifestações que tentavam impedi-lo. Depois, a Ana Amélia fez uma fala, de “chicote”, “ovo”. Vamos considerar, para os efeitos atuais, “ovo” parte de manifestação política civilizada.

Ricardo Kotscho – A Ana Amélia, só um parêntese, que trabalhou muitos anos como chefe de um jornal da RBS.

José Chrispiniano – … a Ana Amélia, que é jornalista, e fez essa fala. Mas o Zero Hora fez o editorial. Dois dias depois do editorial do Zero Hora, em Passo Fundo, a repórter do Zero Hora foi agredida pelos manifestantes contra o Lula aos gritos de “RBS comunista”. Então, esse é o primeiro ponto que quero falar. O Zero Hora falou: “OK, as manifestações, está certo, o Lula não tem popularidade”. Dois dias depois, eles foram hostilizados pelas pessoas que estavam fazendo manifestações contra o Lula.

Estou citando esse episódio para dar um pouco o contexto social. Agora vou bem para o concreto do dia do sindicato. Sai a decisão do juiz e a gente vai para o sindicato. Quando chego no sindicato, o ex-presidente já está lá, e a primeira coisa que faço é conversar com o pessoal do sindicato sobre como é que a gente vai receber a imprensa. Nessa hora, um fotógrafo já tinha sido atacado por ovo. E a gente acerta com a direção do sindicato, conversa com os jornalistas e acerta assim: “A gente vai delimitar essa área para vocês aqui, vocês vão ter segurança, vão andar pelo entorno no sindicato porque vocês querem fazer matéria, mas a gente só pode delimitar essa área aqui”.

Marina Amaral – Fora da manifestação, dentro do sindicato?

José Chrispiniano – Uma área protegida dentro do sindicato, não no entorno da rua. Para te dar o contexto da situação: o sindicato tem duas assessoras de imprensa mais uma pessoa que se voluntariou. Então, o primeiro episódio foi esse do ovo; o segundo foi às 5 da madrugada com uma pessoa: um cinegrafista jogou luz na cara da pessoa. Eu ouvi o barulho, pois estava dormindo dentro do sindicato. Eu desci e tinha um diretor do sindicato brigando para impedir que tivesse agressão contra os jornalistas. O outro episódio em que cheguei depois que tinha acontecido foi sábado de manhã, que foi o do repórter da CBN. O Guilherme Boulos, o Vagner Freitas, da CUT, um diretor do sindicato, todos desceram, cercaram os jornalistas para protegê-los: “Não é para agredir trabalhador. São trabalhadores da imprensa, não é para agredir trabalhador. A gente pode ter discordância com o dono, mas não é para agredir trabalhador”.

Aí, uma coisa que às vezes acontece também nessas situações, sabe quando uma pessoa entra na área procurando pênalti? Um jornalista falou: “A gente está sendo agredido, a gente está sendo maltratado!”. Eu conversei com ele e falei assim, baixo: “A gente discute sua opinião depois. Você está vendo que os dirigentes que estão aqui estão querendo segurança pra vocês diante de uma militância que está muito inflamada?”.

Voltando atrás, em um episódio de outras proporções, mais histórico, quando o Getúlio Vargas se suicidou, todas as redações do Rio, dos jornais que eram contrários a Vargas, foram destruídas. O Carlos Lacerda foi retirado para um navio americano de helicóptero da embaixada, porque ele não podia andar na rua. Obviamente, é uma proporção maior, mas ali havia pessoas irritadas com aquela situação. Esse é o relato mais concreto daquele dia. Acho que muita coisa aconteceu naqueles dias em relação à Constituição do Brasil, acho que muita coisa aconteceu em relação à democracia brasileira. Tem dois episódios diferentes desse que são importantes. O mundo mudou, as pessoas estão na rua com o celular, e as pessoas, por exemplo, ficaram possessas quando a GloboNews falou que estava tendo um churrasco grátis que não existia no local. “Ah, estão entregando carvão, estão entregando cerveja.” Existe um restaurante no topo do sindicato que tem uma grelha e que vende comida e cerveja. Vende! A GloboNews não pode cobrir de perto e fala que está tendo um churrasco, estão distribuindo um churrasco.

Marina Amaral – E por que é que a GloboNews não pode cobrir de perto?

José Chrispiniano – Você está perguntando a minha opinião pessoal?

Marina Amaral – É.

José Chrispiniano – Porque acho que a Globo é um ator político neste país. Não estou dizendo que é justo ou não o repórter que está na rua não poder cobrir. Com esse episódio, o que fiz como assessor de imprensa? Avisei que não tinha churrasco. Eles disseram que não iam mais falar aquilo. Depois, na hora em que ia sair, jornalistas, no ar-condicionado, que não sabem o que está acontecendo, disseram que aquilo era uma armação, e apanhei quando o Lula saiu.

Marina Amaral – Como assim?

José Chrispiniano – Porque ajudei a fazer o cordão para ele sair de lá. Outras pessoas apanharam na hora em que o Lula saiu. E aí a GloboNews diz que aquilo é uma armação. Aí eu escrevi: “Não é uma armação”. Então, você tem um ambiente em que você tem uma preocupação correta, com questões físicas de todo mundo. Ali na caravana do Sul eu só esperava que todo mundo voltasse para casa, mas há muito tempo a preocupação corporativa dos jornalistas é desproporcional com as mentiras que a classe como um todo permita que aconteça.

Vou citar um caso que não é com o Lula, que não gerou polêmica, mas que acho bárbaro, que foi uma matéria do Fantástico que mostrava a vida do Cabral dentro da prisão. Aquilo é um crime, e ninguém na redação virou para dizer que eles estavam cometendo um crime. Você não pode, com a imagem sendo do Ministério Público ou não, ficar exibindo a vida de pessoas presas. Isso fere a lei.

Acho que as pessoas têm que ter segurança no trabalho, ninguém merece sofrer uma agressão física, ninguém mesmo, mas acho que, como classe, os jornalistas estão discutindo muito essa questão, e eu sei que eles não têm o poder, autonomia.

Sei que para os veículos de comunicação é uma questão de sobrevivência impedir que o Lula seja eleito. Não enxergam mais nem como uma questão de diferença política. Eu acho que eles estão errados, acho que isso não está em jogo, mas eles acham que isso está em jogo.

Marina Amaral – Kotscho, você acha que a Globo era um problema maior quando você era assessor de imprensa ou a Globo era como os outros veículos? Porque a Globo, especificamente, é vista como um ator político, e não mais como uma empresa jornalística como outra qualquer? 

Ricardo Kotscho – Eu cobri lá atrás,1980, 1981, nas greves… já ameaçavam virar carros da Globo. E depois disso nós tivemos já sete eleições presidenciais; acho que a sétima é agora. Voltou a democracia, mas essa animosidade só foi aumentando com o tempo. E, sempre que há uma guerra, cada lado dá suas explicações, mas acho que o que está faltando é aparecer alguém neste país, um grupo organizado da sociedade civil. Me bato muito com isso, eu sempre procurei a conciliação, não gosto dos conflitos. E nesse tempo em que trabalhei no governo, uns dois anos, nós não tivemos nenhum problema diretamente com uma empresa ou com um jornalista brasileiro.

Teve um problema com um jornalista estrangeiro, que deu uma dor de cabeça danada, o Larry Rother, que era correspondente do The New York Times. Isso durou uma semana. Mas não me recordo, naquele período, de nenhum conflito maior com ninguém. Nem com a Globo nem com ninguém. Eu me lembro, fui com o Luiz Gushiken, que era o ministro de Comunicações, chefe da Secom, a um almoço na Globo aqui no Rio, em que estavam todos os editores, William Bonner, diretores, editores, apresentadores dos jornais. E foi um longo almoço, uma longa conversa muito civilizada. Depois disso, eu já tinha saído do governo, e veio o mensalão. Acho que ali é que foi o momento em que as coisas se acirraram mais, em que ficou muito claro que havia dois lados em disputa, e cada um tomava as suas dores e as suas aflições.

Mas, realmente, me lembro de um dia, em 2004, em que deram uma matéria na abertura do Jornal Nacional que era relativa às Apaes, associações que cuidam de crianças excepcionais. E a notícia não estava correta. Fiz uma nota, conversei com o presidente, mandei para o Jornal Nacional, e foi para o ar ainda durante o jornal. Quer dizer, era isso que eu tentava fazer, consertar o que estava errado. E havia essa possibilidade de diálogo, que hoje não existe mais.

Marina Amaral – O Kotscho se referiu aqui a um episódio que foi quando o correspondente do The New York Times, o Larry Rother, escreveu um artigo dizendo que o Lula bebia demais. Chegou a ter um pessoal querendo que expulsassem o Larry Rother do Brasil, e o Kotscho foi contra…

Ricardo Kotscho – É que aquilo estava prejudicando a imagem do governo dentro e fora do país. Então, não é que eu fosse defender. Até durante as discussões o Lula brincou comigo, falou: “Você é mais assessor da imprensa do que assessor de imprensa do governo”. Falei: “Não, isso prejudica o governo”. Porque esse Larry Rother era casado com uma brasileira. Então, você não podia tirá-lo do país, tirar o passaporte dele. Então, é uma questão legal.

Tanto que, quando o Márcio Thomaz Bastos, ministro da Justiça, que faz muita falta, voltou de uma viagem no exterior, a coisa foi resolvida no mesmo dia com o advogado do jornalista, e não se falou mais no assunto. Mas foi o único episódio mais difícil enfrentado naquele período de 2003, 2004. O Lula mesmo, o próprio presidente, tinha almoços, jantares, encontros com os donos da mídia, não só com os jornalistas. E não só dos grandes veículos. Uma coisa legal que a gente fez nessa época, não sei se ainda continua depois, era receber no Palácio jornalistas do Brasil inteiro, de rádios, comunicadores populares, que era uma coisa interessante.

E as perguntas que eles faziam, as questões que levantavam eram muito diferentes: era o Brasil real. E em Brasília é o Brasil oficial.

Então, acho que há até uma certa promiscuidade entre jornalistas, políticos, ministros. É aquele mundinho. E na hora que a gente trouxe rádios comunitárias – no país inteiro fizemos vários eventos desses – eu gostei muito como jornalista, porque muitas coisas eu não sabia que estavam acontecendo no Brasil, e o próprio presidente também não sabia. Aquilo mostrou como há um abismo muito grande entre a vida real das pessoas e aquilo que acontece no Supremo, no Palácio do Planalto, na Esplanada dos Ministérios. Tanto é que hoje – vocês pegam a televisão – o principal jornal da noite, o Jornal Nacional, já há vários dias, semanas e tal, só vê ministros do Supremo Tribunal Federal. Eles parecem artistas de novela ou jogadores de futebol. Só dá aquilo.

Aquilo é um outro Brasil, e o Brasil real tem milhões de desempregados, desigualdade, situação caótica na saúde, na educação, em tudo. É isso que eu vejo como jornalista, não como assessor, que eu já não sou há muito tempo, que nós não estamos mostrando essa realidade.

Marina Amaral – Chrispiniano, quando você entrou para ser assessor do Lula, você já sentia essa animosidade da imprensa, isso foi crescendo, como disse o Kotscho? Você imaginava que iria pegar uma bucha desse tamanho com ele sendo ex-presidente?

José Chrispiniano – Primeiro, não imaginei. Eu comecei em março de 2011. Eu trabalhei para uma pessoa diferente. Kotscho trabalhou para um candidato e trabalhou para um chefe de Estado, eu trabalhei para uma pessoa que não ocupava cargo público. Sempre que eu falava isso para a imprensa, a imprensa respondia: “Mas é um homem público”. Eu não nego isso, mas ele não ocupa cargo público. Então, por exemplo, a posição dele foi: “Eu dou entrevista para quem eu quiser, quando eu quiser, como eu quiser, porque eu não ocupo cargo público”. O que é uma discussão que deriva hoje, inclusive, para a questão legal. Ele não é a única, porque tem outras pessoas nos processos. Entre essas várias liberalidades legais que se tomaram contra ele, uma é essa, a extensão do conceito de cargo público, porque ele deixou o cargo em 31 de dezembro de 2010. Então, eu não imaginava isso, e a gente foi observando uma sequência de alterações na imprensa brasileira. Não era uma relação boa já em 2011, mas teve alterações muito grandes de forma, principalmente depois de 2014, e depois da eleição da Dilma existiram alterações mais radicais. Todos os processos a que o ex-presidente responde nasceram na imprensa, todos.

Marina Amaral – Como assim?

José Chrispiniano – Eu vou explicar da primeira matéria. Um procurador abriu uma notícia de fato para investigar as palestras do ex-presidente em 2015.

Essa notícia de fato, o procurador que abre não pode investigá-la. Essa notícia de fato é distribuída por um sorteio. Um dia depois do sorteio, um repórter da Época foi lá e requereu aquele documento. Não tinha como ele saber que aquele documento, em tese, existia. Isso virou uma capa da manchete da Época de 1º de maio de 2015. Foi uma matéria de capa, com uma série de acusações contra o ex-presidente.

A gente respondeu a essa série de acusações contra o ex-presidente. Elas não resultaram em nenhum processo. As respostas nossas são factualmente corretas, a matéria da Época tem um monte de erros. Nenhum deles jamais foi corrigido. Três anos depois, a Época tem uma capa sobre fake news.

Esse processo iniciou uma devassa no Instituto Lula. Houve outra, que deu origem ao caso tríplex. Mas isso resultou, muito tempo depois, em um outro processo sobre o sobrinho do ex-presidente. Uma outra matéria do Estadão falava de uma possível irregularidade relacionando uma MP de 2009 com uma atividade privada do filho do ex-presidente de 2014. Como isso era muito forçado, criaram um processo para 2014, relacionado a compra de caças no governo Dilma e outro processo relacionado àquela MP de 2009, relacionado a um dinheiro imaginário, que ninguém sabe que existe, que esse envolve o presidente e o Gilberto Carvalho. Estou passando muito rápido pelos processos, peço até desculpas.

Voltando para esse caso da Época: o procurador não quis revelar, em um processo que foi aberto dentro do Conselho Nacional do Ministério Público, quem pediu a notícia de fato. A gente só acha curioso que, um dia depois de ela ter sido distribuída, um repórter da Época foi lá – vamos acreditar em coincidência – e pediu. Então, a probabilidade de ter sido alguém da Época é muito grande.

Sobre a independência da imprensa brasileira em relação ao ex-presidente nos processos que ele sofre, acho que a maior palavra é a do Moro, que sempre agradece o apoio da imprensa. Ele agradece o apoio da imprensa, e em um artigo de 2004, ele falou da importância de uma imprensa “simpatizante”. No caso, ele estava falando das Mãos Limpas. E ele ganha prêmios, ele vai em eventos. Então, quer dizer, houve ali uma simbiose muito complicada. E o caso do apartamento do Guarujá, que é o de consequência política, histórica e pessoal maior para o presidente, a primeira vez que alguém entrou na Justiça com esse caso foi o ex-presidente processando o jornal O Globo.

Marina Amaral – E a matéria era de quando?

José Chrispiniano – Fim de 2014. O Moro cita uma matéria de 2010. Eu acompanhei pessoalmente quase todas as audiências em Curitiba. Até hoje, como o Jornal Nacional dá esse processo no seu resumo, está errado. O Jornal Nacional diz que o ex-presidente foi condenado por ter recebido um apartamento no Guarujá em troca de contratos com a Petrobras. A sentença não diz isso. Essa é a tese do Ministério Público, que cita três contratos. Quando o Moro vai condenar, ele cita um contrato, mas ele não diz que o dinheiro veio daquele contrato ou que aquele contrato foi dado em troca do apartamento. Isso não está na sentença. O ex-presidente foi condenado por uma coisa chamada “atos de ofício indeterminados”.

E, provavelmente, a maioria das pessoas não sabe disso. Atos de ofício indeterminados é como você tomar uma multa de trânsito e perguntar se foi por excesso de velocidade, por estacionar em lugar proibido, por dirigir bêbado, e o Detran te responder: “Eu estou te multando porque você tem carro há quatro anos e alguma coisa você deve ter feito”.

O concreto da indignação do ex-presidente diante da imprensa, diante de uma coisa absurda, kafkiana, é que as pessoas falam assim: “Mas ele reclama da Globo?”. Como ele poderia não reclamar, se ele se sente injustiçado?

Marina Amaral – Você falou que esses processos surgiram de reportagens da imprensa. Eu acho que isso não é uma coisa tão rara. Houve vários outros casos que começaram na imprensa, acho que até o caso Collor começou na imprensa. O jornalismo investiga e chega nos casos. Você acha que a imprensa falhou em informar? Toda a imprensa ou a Globo, especificamente, perseguiu o presidente?

José Chrispiniano – Eu acho que, como um todo na imprensa, o que existe hoje não é jornalismo investigativo. Existe uma reprodução de materiais do Ministério Público, que cinco minutos antes te liga para pedir um outro lado completamente burocrático, que é hipócrita, que é uma homenagem que o vício faz à virtude. É só esse pedido do outro lado. Porque, não importa o que você diga, aquela versão é a que vai sair. Ato de ofício indeterminado é um deles. Corrupção é você receber algo em troca de um ato seu como funcionário público. O ato do Lula inexiste. O Moro não conseguiu identificar.

Marina Amaral – Na abertura da sentença ele cita várias delações…

José Chrispiniano – Mas as delações não fazem referência ao crime que ele está investigando. Para você ser condenado, não basta a opinião sua de que o Lula seja corrupto. Para condenar em um processo penal, você tem que fazer uma acusação de crime e provar a acusação de crime que você fez. Existe uma acusação de crime feita pelo Ministério Público, o que o Moro escreve na sentença é diferente da tese do Ministério Público e tem muitos problemas jurídicos e de comprovação. Tanto do ponto de vista de não conseguir dizer o que o ex-presidente fez quanto de não conseguir provar que o apartamento é dele, pelo outro lado. Então, ele não prova nem que ele recebeu alguma coisa. Na realidade, o apartamento é da OAS, porque o apartamento não só é formalmente da OAS, como ele está amarrado financeiramente. A OAS, para dar o apartamento para o ex-presidente, precisaria pagar, liberar o imóvel do banco. E, em um caso hipercoberto, a imprensa ficava cobrindo supostas brigas, discussões entre o advogado e o Moro. Outra coisa que é interessante: três contratos, sobra um. São três contratos que seriam a origem do dinheiro, dois da Repar, que é uma refinaria no Paraná, e um em uma refinaria do Nordeste. Nos dois da Repar, o Moro desistiu, não estão na sentença. No da refinaria do Nordeste, o depoimento do cara da OAS diz que o dinheiro vai para o PSB de Pernambuco. Diz. Isso está em um documento público. Então, assim, você tem três contratos, e o Moro só pode julgar esse

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