O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) acatou, nesta quarta-feira (17), o recurso impetrado pela defesa do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra contra sua condenação, proferida em 2012, pela tortura e morte do jornalista Luiz Eduardo Merlino, ocorrida em 1971 nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. Os desembargadores, por unanimidade, alegaram a prescrição do crime, sem análise do conjunto probatório, e decidiram encerrar a ação.
Julgado em primeira instância pela 20ª Vara Cível de São Paulo em 26 de junho de 2012, Ustra foi condenado a pagar indenização de R$ 100 mil por danos morais para Ângela Mendes de Almeida, viúva de Luiz Eduardo Merlino, e para Regina Maria Merlino Dias de Almeida, irmã da vítima. Não se trata de ação penal, mas indenizatória, subscrita pelos advogados Fábio Konder Comparato, Claudineu de Melo e Aníbal Castro de Souza. O coronel morreu em 2015, mas havia entrado com recurso.
“O tribunal se ateve a uma questão preliminar, não entrou no mérito, se ateve a questão da prescrição e entendeu que a ação está prescrita porque os fatos aconteceram em 1971 e, de acordo com o tribunal, a contagem da prescrição é a partir da Constituição de 1988”, explicou o advogado Aníbal Castro de Souza. “A gente sabia que a prescrição podia ser uma questão jurídica importante neste caso”, disse, anunciando que a defesa entrará com recurso no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Durante o julgamento, o relator do caso, desembargador Salles Rossi, chegou a tecer juízo de mérito em seu voto sobre a morte de Merlino, desqualificando as testemunhas ao alegar que nenhuma delas havia visto Ustra torturar o jornalista, e defendendo a veracidade do laudo de suicídio apresentado à época pela ditadura.
Conforme o relator lia seu voto, familiares e amigos da família da vítima arregalavam os olhos, levavam as mãos à boca ou à cabeça. O clima entre os presentes era de espanto e incredulidade com o teor dos argumentos do magistrado. Também chamou a atenção a ausência da defesa oral do advogado de Ustra em seu próprio recurso.
Apesar de ensaiar entrar no mérito do caso, ao final o relator Sales Rossi optou por restringir a alegação do seu voto a questão da prescrição, ao que foi acompanhado pelos desembargadores Mauro Conti Machado e Milton Carvalho, membros da 13ª Câmara Extraordinária de Direito Privado.
Luta inglória
Com a voz pausada e emocionada, Ângela Mendes de Almeida, viúva do jornalista, ponderou que um resultado diferente não alteraria a situação da morte de seu ex-marido, mas poderia dar um recado importante à sociedade na atual conjuntura do país, onde o candidato líder na disputa presidencial defende abertamente a ditadura e a tortura.
“Esse recado que eles deram é bastante explícito. Seria uma coisa (a recusa do recurso) que iria contra essa onda conservadora que acha que tortura não é nada, que pode torturar”, afirmou.
Vítima direta do regime de exceção imposto no Brasil por 21 anos (1964-1985), a viúva de Merlino mandou um alerta aos eleitores de Jair Bolsonaro que normalizam a tortura: “Eles vão se arrepender muito”.
Embora considere importante recorrer da decisão tomada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, Ângela disse não ter otimismo com as novas etapas do processo, uma luta de 47 anos para provar o assassinato de seu ex-marido.
“A gente luta mesmo sem perspectiva. Eu saindo daqui hoje não posso ter uma perspectiva positiva da Justiça, mas não é por causa disso que nós vamos deixar de recorrer e lutar, porque não é o único caso de alguém morto, não é o único caso de morto pela tortura, e a tortura continua acontecendo, nunca parou de acontecer. E agora vai ser pior, porque agora ela tá autorizada. A gente sempre vai pra um julgamento esperando justiça, a gente sai desiludido, e agora vamos pro próximo. Nessa justiça brasileira, que expectativa a gente pode ter?”
O caso
Luiz Eduardo Merlino era jornalista e havia trabalhado no Jornal da Tarde e na Folha da Tarde, sendo também militante do Partido Operário Comunista (POC). Ele e a esposa viveram na clandestinidade entre 1968 e 1971 quando, após período na França, o jornalista retornou ao Brasil e foi preso. A versão inicial difundida pela ditadura era de que ele, aos 23 anos, havia cometido suicídio durante uma transferência de presídio.
Na sentença que condenou Ustra em 2012, a juíza Claudia de Lima Menge disse que, após ouvir as testemunhas de acusação e de defesa, era evidente que o coronel dirigia as sessões de tortura e “calibrava” a intensidade e a duração dos golpes, além de escolher os instrumentos utilizados.
“Mesmo que assim não fosse, na qualidade de comandante daquela unidade militar, não é minimamente crível que o requerido não conhecesse a dinâmica do trabalho e a brutalidade do tratamento dispensado aos presos políticos. É o quanto basta para reconhecer a culpa do requerido pelos sofrimentos infligidos a Luiz Eduardo e pela morte dele que se seguiu, segundo consta, por opção do próprio demandado, fatos em razão dos quais, por via reflexa, experimentaram as autoras expressivos danos morais”, afirmou a juíza.
A condenação de 2012 havia sido a segunda do Judiciário paulista, no âmbito civil, de reconhecer a culpa do coronel em casos de tortura e morte. A primeira foi obtida pela família Teles de Almeida, em 2008, quando o TJ-SP declarou Ustra como torturador, decisão ratificada em 2012 ao julgar recurso do coronel.