Duas decisões recentes emanadas do Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil referentes a tentativas de censura de blogs jornalísticos reafirmam a defesa da corte da liberdade de imprensa.
Em ambos os casos, os jornalistas recorreram citando ADPF 130, decisão de 2009 do tribunal que revogou a Lei de Imprensa de 1967, criada durante a ditadura militar, e que estabeleceu a inconstitucionalidade da censura e afirmou a liberdade de imprensa e de expressão no país.
No dia 5 de junho, a primeira turma do STF cassou uma decisão liminar que há dois anos havia determinado a retirada de duas reportagensdo blog do jornalista Marcelo Auler. Pouco mais de uma semana depois, em 14 de junho, o ministro Dias Toffoli cassou decisão de abril de 2017 que determinava a retirada do ar do Blog do Nélio, do jornalista Nélio Raul Brandão.
As duas tentativas de censura partiram de agentes públicos incomodados com reportagens publicadas nos respectivos veículos: a delegada da Polícia Federal Erika Mialik Marena, no caso do blog de Marcelo Auler, e a Associação Sul-mato-grossense dos Membros do Ministério Público (ASMMP), no caso do Blog do Nélio.
No primeiro caso, Marena entrou com pedido no 8º Juizado Especial Cível do Paraná em 30 de março de 2016 pela retirada do ar de duas matérias publicadas no mesmo mês, nas quais Auler mencionava o suposto envolvimento da delegada no vazamento de informações sobre a Operação Lava Jato. O juiz Nei Roberto de Barros Guimarães atendeu ao pedido da delegada seis horas depois de ele ter sido impetrado, segundo o blog de Auler, e decidiu em caráter liminar, sem que tenha sido concedido direito de defesa ao jornalista.
Auler levou o caso ao Supremo Tribunal Federal alegando que a liminar concedida pelo juiz Guimarães configurava censura prévia e desrespeitava a decisão do STF na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 130, que revogou a Lei de Imprensa (Lei 5.250/1967) e estabeleceu a inconstitucionalidade da censura e afirmou a liberdade de imprensa e de expressão no país.
Em novembro de 2017, o ministro do STF Alexandre de Moraes decidiu manter a liminar alegando que a proibição da veiculação das reportagens não era uma “censura prévia” e que a censura é proibida apenas antes da publicação de um conteúdo, mas a Justiça pode analisar posteriormente o que for publicado e suspender sua divulgação.
O jornalista recorreu da decisão de Moraes e, no dia 5 de junho, a primeira turma do STF votou sobre o recurso. Por três votos a dois, a primeira turma decidiu pela cassação da liminar que determinava a retirada das reportagens do blog de Auler. Embora Moraes e o ministro Marco Aurélio tenham votado pela negativa ao recurso do jornalista alegando que o paradigma da ADPF 130 não se aplicava ao caso, os ministros Luiz Fux, Luís Alberto Barroso e Rosa Weber votaram a favor do recurso.
Segundo o site do tribunal, Fux salientou que “a jurisprudência do STF é no sentido de que deve haver uma maior tolerância quanto às matérias de cunho potencialmente lesivo à honra de agentes públicos, especialmente quando existente interesse público”, como considerou ser o caso das matérias excluídas do blog de Auler. Já Barroso avaliou que “a Constituição protege o direito de retificação, resposta e reparação, mas não o de retirada de crítica plausível”, enquanto Weber criticou o caráter liminar da decisão do juiz Guimarães, “que determinou a exclusão das matérias antes mesmo de ser julgado, no mérito, se houve ou não ofensa”.
Embora a decisão do STF seja uma boa notícia, em conversa com o Centro Knight Auler disse que “ganhou, mas não levou”. Ele explicou que, depois da liminar, o juiz Guimarães emitiu sua sentença sobre o caso, condenando o jornalista a pagar R$ 10 mil de indenização à delegada e determinando a retirada definitiva das duas matérias de seu blog. Auler entrou com recurso contra a sentença e apresentou na última semana ao juiz a decisão do STF. O juiz argumentou que o STF decidiu sobre a liminar, não sobre a sentença definitiva, e negou o recurso.
O jornalista disse que está no aguardo da publicação da decisão do STF e que, a partir dela, irá apresentar novo recurso no Supremo para derrubar a condenação que determina o pagamento da indenização e a censura ao blog.
Decisão determinava pena de prisão a jornalista
Já o caso que envolvia o jornalista Nélio Brandão começou no fim de 2016, quando a ASMMP moveu ação contra ele em defesa de membros do Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, conforme reportou o jornal Folha de S. Paulo. A entidade alegava que o jornalista havia veiculado reportagens ofensivas aos agentes públicos e pediu a retirada do blog do ar.
A primeira decisão a respeito negou a suspensão do domínio na internet, mas determinou a retirada de uma notícia e que o blog se abstivesse de publicar novas matérias “com teor pejorativo” sobre os membros do MP, sob pena de R$ 1 mil por dia. A entidade fez novo pedido alegando que Brandão estava descumprindo a decisão judicial, e o juiz Paulo Afonso de Oliveira determinou então a retirada do blog do ar, sob pena de prisão do jornalista por “crime de desobediência”, segundo a Folha.
A defesa de Brandão recorreu ao STF alegando que a matéria que motivou a decisão “descreve fatos públicos e notórios de interesse da população sul-mato-grossense” a respeito de gastos e uso do orçamento, com fundamento em dados publicados no Diário Oficial do próprio MP estadual, segundo reportagem do site do tribunal. A defesa também sustentou que as decisões feriram a jurisprudência do STF em relação à liberdade de imprensa.
Em maio de 2017, o ministro Dias Toffoli suspendeu a liminar afirmando que a decisão do juiz Oliveira “se assemelha à intervenção censória sobre veículos de comunicação impeditiva de novas publicações” e que a lógica constitucional brasileira referente à liberdade de expressão e de comunicação social aplica-se ao jornalismo digital, “o que resulta na mais absoluta vedação da atuação estatal no sentido de cercear, ou no caso, de impedir a atividade desempenhada pelo reclamante”.
No último dia 14, Toffoli cassou a decisão do juiz Oliveira. “A determinação judicial cautelar de retirada do domínio eletrônico do ambiente virtual, sob pena de prisão do jornalista, resultou em inaceitável prática judicial inibitória e censória da liberdade constitucional de expressão, configurando afronta ao julgado desta Corte na ADPF 130”, escreveu o ministro em sua decisão. Ele ressaltou, porém, que a decisão favorável ao jornalista não exime de responsabilidade o emissor de opinião, pensamento, reportagem ou outro material veiculado no caso de comprovação de abuso do direito de informar e de dano, segundo o site do STF.
CNJ estima 300 mil ações no país sobre liberdade de imprensa
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou no dia 11 de junho seu relatório estatístico sobre processos que envolvem liberdade de imprensa. A entidade estima que existam cerca de 300 mil dessas ações no país, tanto em trâmite quanto já solucionadas.
No estudo apresentado, o Departamento de Pesquisas Judiciárias (DPJ) do CNJ analisou 2.373 processos – 4,5% do universo estimado de casos existentes – a partir de informações de processos existentes em cadastros da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), Associação Nacional de Jornais (ANJ) e Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert).
Mais da metade dos pedidos refere-se a danos morais e a assuntos relacionados ao direito eleitoral, os últimos geralmente propostos por candidatos ou partidos políticos questionando matérias que teriam prejudicado sua imagem junto ao eleitorado.
O motivo mais frequente das ações é difamação (59,5%), seguido por violação à legislação eleitoral (19,4%). O Grupo Globo, incluindo jornais, revistas e meios digitais do conglomerado de mídia, apareceu como o veículo de imprensa mais acionado na Justiça brasileira, titular de 34% dos processos analisados, a maioria deles sobre difamação e/ou calúnia.
Blogs jornalísticos, como os de Auler e Brandão, estão em quarto lugar no ranking do CNJ como alvo de 90 casos entre os analisados pela entidade, superando grandes empresas de comunicação como as redes SBT, Record e Bandeirantes e a Editora Abril.
A última notícia no blog de Marcelo Auler, inclusive, trata de novo processo do qual o jornalista é alvo, novamente movido por um agente público. Segundo a nota, o delegado da Polícia Federal Eduardo Mauat entrou com um processo contra Auler em abril, quase dois anos depois da publicação da matéria que o delegado contesta na ação, afirmando que esta o ofendeu “na sua dignidade moral” e “na sua honra”. O delegado cobra de Auler a indenização de 40 salários mínimos (R$ 37.480), a máxima permitida em Juizado Especial, escreve o jornalista.
Segundo Auler relatou ao Centro Knight e conforme publicou em seu blog, na audiência do processo realizada no dia 19 de junho, Mauat propôs como acordo que o jornalista tirasse o blog do ar e revelasse suas fontes dentro da Polícia Federal. Auler recusou a proposta e pediu para que ela constasse nas atas do processo. A próxima audiência ainda deve ser marcada. Segundo o jornalista, as duas partes chamaram testemunhas de fora de Santa Maria do Sul e devem aguardar a decisão do juiz a respeito. Uma das testemunhas da acusação, disse Auler, é a delegada Erika Marena – a mesma que o processou dois anos atrás.