A reportagem da Folha de S.Paulo publicada na última quinta-feira (9/8) causou alvoroço nas redes sociais e conseguiu um fato inédito: uniu dois grupos, os progressistas e conservadores – ou a esquerda e a direita, embora essa divisão esteja um tanto quanto desgastada. Em tempos de polarização, foi quase unânime a avaliação de que o texto é um erro do começo ao fim, uma afronta à memória da PM Juliane dos Santos Duarte, que, antes de ser PM ou qualquer outra classificação que queiram dar, é um ser humano.
Uma vítima que morreu, aliás, por ser policial, fato que as próprias entidades de direitos humanos – que muitos desinformados insistem em dizer que defendem bandidos – consideraram um grave ataque aos direitos humanos. Cabe lembrar que Juliane possivelmente foi morta pelo crime organizado, em circunstâncias ainda a serem investigadas, e que o Estado a quem servia tinha obrigação de combater. E não o fez. Tanto que a facção criminosa PCC faz e acontece na favela de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, controlando o tráfico de drogas desde 2003, segundo a própria polícia. Justamente o PCC que o presidenciável e ex-governador de SP, Geraldo Alckmin (PSDB), tem falado aos borbotões, lançando mão de estatísticas de homicídios no estado de São Paulo, que está sob controle.
Ao dizer que a PM “teve momentos livres de bebida, dança e beijos”, diretamente é imputada à vítima a responsabilidade pelo crime bárbaro que aconteceu. É aquela velha história que, nós, mulheres estamos acostumadas quando falamos de violência sexual: “Mas também, isso é hora de estar na rua?”, “Isso é roupa de usar?”, “Não se deu o respeito” e por aí vai o rosário interminável de frases feitas e mantidas pelo patriarcado. E aqui cabe ressaltar que, na primeira publicação, havia a palavra ‘pegação’, substituída depois, porque, né? Sempre pode ser pior.
Ao descrever os “momentos de pegação” de Juliane, a reportagem expõe como a lesbofobia age na sociedade: mulheres lésbicas se tornam um objeto de fetiche para os homens, atitude que é reflexo do machismo estrutural, tão intrínseco em nossa cultura atual, que reforça o julgamento de que em uma relação de duas mulheres sempre irá carecer uma figura masculina. Por isso, é comum chegar aos ouvidos dessas mulheres comentários como “Está faltando algo aí hein?”, “Não precisam de um homem?”, “Qual de vocês é o homem da relação?”. Dessa forma, fetichizando e erotizando os momentos de intimidade da PM Juliane, a reportagem faz com que o leitor alimente o estereótipo de que relações homoafetivas de mulheres servem apenas para o prazer masculino, reforçando também a promiscuidade que frequentemente é associada a comunidade LGBT.
Do ponto de vista técnico, a pergunta que fica é: qual a relevância jornalística das informações apresentadas? Nenhuma. Não contribui para elucidar o caso, não traz conteúdo relevante para contar a história de um crime bárbaro contra um ser humano, só são tijolos de preconceito, infelizmente ainda muito usados na construção narrativa da mídia hegemônica. E nesse sentido, também é importante destacar que o repórter Rogério Pagnan não pode ser levado como o Judas da história toda. Existe toda uma cadeia que começa pelos “barões da comunicação”, os donos das grandes empresas de jornalismo (todos homens, brancos, cisgêneros e ricos), passando por chefias de grandes veículos que perpetuam essa lógica e chegando à ponta de lança que, claro, acaba por reproduzir um discurso sem qualquer reflexão. Como está a representatividade nas grandes redações? Quantos são os representantes de minorias em direitos nessas redações? Mulheres, negros e negras, lésbicas, bissexuais, transexuais e gays. O funil só se estreita.
Esse aspecto é importante de ser salientado, porque a reportagem que causou ojeriza em muita gente é a perpetuação de discursos correntes e que, pela lógica da hipocrisia moral e do poder econômico, ainda encontram eco para seguirem vivos.
E embora tenhamos visto em alguns lugares frases como: “não vamos colocar o link para não dar audiência”, acreditamos no contrário: defendemos que essa reportagem deve servir de modelo em universidades sobre como não fazer jornalismo. A nossa área está vivendo uma crise sem precedentes, com redações inteiras encerrando as atividades e colegas desempregados. Nunca o jornalismo viveu uma crise de credibilidade como essa. E, ao mesmo tempo, nunca precisamos tanto do jornalismo responsável, empático e de qualidade.