Na semana passada, mais especificamente no dia 9 de março, a BBC Brasil publicou uma entrevista com escritora Conceição Evaristo, cujo título em primeira pessoa “É preciso questionar as regras que me fizeram ser reconhecida apenas aos 71 anos, diz escritora”, por si só já nos faz parar e refletir sobre a presença e o reconhecimento das escritoras negras no Brasil. Na entrevista concedida, Conceição questiona o que torna a ascensão social e profissional, principalmente na literatura, tão difícil para mulheres negras no Brasil. Quando nos referimos a escritoras negras no Brasil, duas me vêm à cabeça: Conceição Evaristo e Carolina de Jesus. Onde estão as outras? Por que há pouca participação das negras na literatura (e no cinema também, na produção, na direção e no roteiro)?
Sim, eu sei, vivemos num país machista cuja pesquisa divulgada recentemente pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de Brasília, mostrou que o perfil do escritor brasileiro publicado nas grandes editoras (e pasmem: que se mantém por pelo menos 43 anos) é homem, branco, de classe média, nascido no eixo Rio-São Paulo. Seus narradores, protagonistas e coadjuvantes são em sua maioria homens, também brancos, de classe média, heterossexuais e moradores de grandes cidades. Sim, a participação das mulheres na literatura é pequena, mas quando nos referimos à mulher negra a situação é ainda pior. Até porque, quando eu vou numa livraria em qualquer canto desse país, eu ainda encontro obras de Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telle, Rachel de Queiroz, Lya Luft, Ana Maria Machado, Cecília Meirelles e Cora Coralina, mas infelizmente não vejo muitas ofertas de literatura produzida por mulheres negras, exceto Carolina de Jesus, embora há um tempo atrás, no maior aeroporto internacional do Brasil, eu tenha deixado o vendedor um pouco constrangido ao perguntar por que os livros da Carolina de Jesus não estavam tão visíveis, ou seja, na prateleira principal, como então estavam os livros da Clarice Lispector.
Se você digitar agora no Google “As 20 maiores escritoras brasileiras”, no ranking de dez escritoras, aparece apenas uma escritora negra. 19 mulheres escritoras brancas e apenas uma negra. A primeira vista parece que nós não produzimos. Não temos nada a dizer? Sim, temos. E muito. As palavras de Conceição Evaristo nos mostra resiliência, mas também indignação de uma mulher negra cuja primeira obra ficou 20 anos na gaveta à espera da resposta de alguma editora. A indignação de uma escritora negra que só agora, aos 71 anos, foi reconhecida por seu talento e por seus relatos doloridos cristalizados em suas obras.
Demorei muito para conhecer os textos da Evaristo (quase 35 anos!). Não por culpa minha ou por culpa dela. Se eu tivesse lido-os antes, muitos dos dilemas e das dores retratados em seus personagens teriam sidos por mim compreendidos e algumas lacunas preenchidas diante de tantas dúvidas que às vezes demoram a ser respondidas.
Como toda garota que um dia sonha em ser escritora, eu cresci lendo autoras brasileiras: Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Hilda Hilst. Todas elas maravilhosas, sem dúvida. E todas elas brancas. Talvez por isso nenhuma delas me davam o reconhecimento de mim mesma em seus personagens. As crises existenciais, a abertura da percepção e do real que as mulheres retratadas nos textos de Clarice Lispector nos presenteiam ou mesmo os dilemas durante a ditadura militar das três garotas retratadas por Lygia Fagundes Telles, na obra As Meninas, nunca me fizeram me reconhecer como mulher negra, marginalizada, vítima de preconceitos e estereótipos. Sim, é claro que os textos dessas autoras citadas dialogaram e dialogam comigo até hoje, mas é um diálogo poético. Em contrapartida, as personagens, mulheres e negras, dos textos de Conceição Evaristo, estão, para mim, mulher e negra, prenhes de
Não quero comparar uma escritora à outra. Longe disso. Como eu disse anteriormente, passei minha juventude debruçada sobre os textos de escritoras brancas. O que eu quero afirmar é que enquanto as obras dessas grandes e reconhecidas autoras brancas me sugerem realidades, Olhos d’água, de Conceição Evaristo exprime a minha realidade. E neste sentido me proporciona uma emoção, uma simpatia, uma comunhão, em suma, uma intimidade entre a minha interioridade e a obra.
Seus textos são curtos e duros, como infelizmente ainda é a realidade de muitas mulheres negras. O conto “Olhos d'água”, que dá título a sua obra mais famosa, retrata o anseio de uma filha que luta por não esquecer os olhos marejados e sofridos da mãe. Olhos profundos, atravessados pela dor. “A cor dos olhos de minha mãe era cor de olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum”. O conto “Maria” me fez chorar. Quantas Marias são “linchadas” todos os dias, tão cansadas da labuta e da vida, que mal tem tempo de se defenderem do que são acusadas, na maioria das vezes, injustamente.
Enfim, “Olhos d'água” é aquele livro que conta a história de mulheres como eu e você e nos faz lembrar da nossa luta diária.
Enquanto leio a entrevista da Conceição Evaristo, fico imaginando a quantidade de mulheres negras que escrevem e que veem suas obras abortadas pelo mercado editorial. Penso em quantas mulheres negras enviaram originais para as editoras e como esses originais foram descartados sem qualquer chance de análise e publicação. Penso em minhas alunas, pobres e negras, que sonham
um dia em ter suas narrativas publicadas. Penso nos meus livros, os quais em quase dez anos de existência, sempre receberam um não como resposta, depois de longos meses de espera. Mas também penso que ao ler uma entrevista e o desabafo de uma escritora negra num meio de comunicação tão importante quanto a BBC, significa que novos tempos estão por vir. É preciso ser resiliente quando se é mulher e quando se é negra.