Na quinta-feira, 18 de outubro de 2018, meu tio, o jornalista Luiz Eduardo Merlino, completaria 71 anos. Isso se não tivesse sido assassinado sob tortura, em julho de 1971, aos 22 anos, em uma sessão comandada por Carlos Alberto Brilhante Ustra, então chefe do DOI-Codi, principal órgão de repressão da ditadura civil-militar.
É difícil o exercício de imaginá-lo com 71 anos. Para mim, que fui impedida por Ustra e outros algozes de conhecê-lo, ele ainda é o jovem da foto. Quando criança, fui apresentada a meu tio por meio de um retrato que ficava numa cômoda de minha avó. O tempo passou e ele segue sendo o jovem de 20 anos. O jovem da foto.
Nesta semana, Luiz Eduardo foi simbolicamente torturado e morto novamente. Os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo, Luiz Fernando Salles Rossi, Milton Carvalho e Mauro Conti Machado extinguiram o processo que condenava Ustra a pagar uma indenização à minha família. Em 2010, a ex-companheira de Luiz Eduardo, Angela Mendes de Almeida e sua irmã, Regina Merlino Dias de Almeida, minha mãe, entraram com uma ação por danos morais pedindo o reconhecimento da responsabilidade do estado e de Ustra. Deixamos que a juíza decidisse o valor da indenização – para nós, o mais importante era que o estado reconhecesse a barbárie.
Em 2012, a juíza Cláudia Menge aceitou a ação. Na sentença, afirmou ser evidente que o coronel dirigia as sessões de tortura e “calibrava” a intensidade e a duração dos golpes, além de escolher os instrumentos utilizados. Ustra, no entanto, recorreu. Ele morreu pouco tempo depois, em decorrência de um câncer, em 2015.
No novo julgamento, no entanto, o resultado foi diferente. Sob o argumento de que o pedido prescreveu, os desembargadores foram unânimes em pedir a extinção da ação. A decisão, além de contrariar a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça – que diz que crimes de tortura jamais prescrevem – também fere tratados internacionais. O Estatuto de Roma, tratado da Corte Penal Internacional, diz que chamados crimes contra a humanidade, como tortura e morte de opositores políticos, não são passíveis de prescrição.
Os desembargadores alegaram que não havia provas e chegaram a mencionar Ustra como como ‘suposto torturador’. Suposto? Embora o presidenciável Jair Bolsonaro, que tem o coronel como ídolo tenha dito que não há nenhuma condenação contra o comandante do DOI-Codi, Ustra foi, sim, declarado torturador pelo Superior Tribunal de Justiça em 2014. Além disso, a ele foram atribuídas 45 mortes e desaparecimentos no relatório final da Comissão da Verdade.
Os desembargadores também se referiram à ditadura – que torturou, sequestrou, matou e estuprou pessoas, com 434 casos de mortes e desaparecimentos – como “suposta ditadura”.
Em uma única decisão, os desembargadores colocam em dúvida a história do país e todos os avanços dos últimos anos em relação ao reconhecimento das barbáries cometidas pelo governo brasileiro durante o regime militar. Pior: bem no momento em que temos um candidato à presidência que defende a ditadura, a tortura e trata os mortos e desaparecidos com escárnio.
Meu tio foi assassinado e tentaram ocultar seu corpo. Quem o encontrou foi meu pai, Adalberto Dias de Almeida, então delegado. Ele foi ao Instituto Médico Legal junto com Geraldo Merlino, meu tio-avô, médico. Encontraram meu tio sem identificação e com marcas de tortura. O corpo foi entregue em caixão fechado. Foi ali, há quatro décadas, que começou a luta da minha família pela verdade e pela justiça.
Depois da audiência, Angela Mendes, viúva de Merlino, disse repetidamente à imprensa que o recado que a Justiça passa é de tolerância e conivência com a tortura. Concordo com ela. Para mim, neste momento, a decisão significa uma consonância da justiça com o discurso violento de Bolsonaro.
A ditadura que Bolsonaro e seus apoiadores apoiam é essa que colocou Luiz Eduardo Merlino no pau de arara. Quem os defende tem as mãos sujas do sangue de Merlino e de todas as vítimas da ditadura.
Tatiana Merlino é jornalista. Artigo originalmente publicado no The Intercept Brasil.