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Liberdade de imprensa sob ataque

Liberdade de imprensa sob ataque

Glenn Greenwald, jornalista, escritor e advogado, fundador do The Intercept Brasil, um dos símbolos da luta pela liberdade de informação e dos direitos humanos, é um dos profissionais mais atacados hoje na imprensa, na rua, nas redes sociais e no Congresso pelo atual ministro da Justiça, ex-juiz Sérgio Moro, e pelo presidente da República e seus apoiadores. Há 14 anos, quando adotou o Brasil, o país respirava esperança, experimentava um boom econômico e se apresentava para o mundo como uma    democracia em forte ascensão. Era o primeiro mandato do ex-presidente Lula (PT-SP). Agora, Glenn exerce a profissão de repórter investigativo sob um governo que declarou guerra à transparência e à informação em vários flancos. Mas, principalmente, a ele e à imprensa.

Para o presidente Jair Bolsonaro (PSL-RJ), Greenwald é muito perigoso. Ele e sua equipe de jovens jornalistas investigativos estão desmascarando o homem que representa, no Ministério da Justiça, o pilar da moralidade no governo. Ele é aquele que,  há pouco, se vendia como o suprassumo da decência e que se uniu ao presidente para varrer a corrupção do país.

Definiu Frei Betto em um de seus artigos: “Apropriar-se do Cristianismo e convencer a opinião pública de que ele [Jair Bolsonaro] foi ungido por Deus para consertar o Brasil. Seu nome completo é Jair Messias Bolsonaro. Messias em hebraico significa ‘ungido’. E ele se acredita predestinado.”

O jornalista do The Intercept Brasil arranha a imagem de Moro, da Lava Jato e consequentemente a de quem o escolheu. O capitão da reserva e o ex-juiz colocam o peso do Estado e dos apoiadores para parar a série de reportagens Vaza Jato, publicada desde 9 de junho. Menos de dois meses depois da primeira matéria, a Polícia Federal, sob comando de Sérgio Moro, prendeu quatro suspeitos de hackear o celular do próprio ministro, do procurador Deltan Dalagnol, coordenador da força–tarefa da Lava Jato em Curitiba e de outras autoridades. Um dos advogados de Greenwald, o jurista Nilo Batista, diz que está em marcha uma tentativa de criminalização do seu cliente. “A tese que eles queriam é que alguém fosse suficientemente pressionado para inventar uma história diferente daquilo que aconteceu. Mas já não aconteceu. Era tentar colocar o jornalista numa posição de instigador do hackeamento. E, portanto, partícipe do hackeamento. Mas isso nunca aconteceu.”

Em resposta às repetidas vezes em que Bolsonaro disse que Glenn pode ser preso, Batista respondeu. “A [ameaça] de hoje, do Bolsonaro, é que ele acha que é [crime de] receptação… Ele acha que uma mensagem [dos diálogos vazados da Lava Jato] é coisa móvel pra você ter um furto.” E é taxativo: “Para ele [Greenwald] sofrer mesmo algum risco [de ser preso], só se o Bolsonaro conseguir dar um golpe pelo qual ele tanto aspira todos os dias.” Em um ato, mês passado no Rio de Janeiro, em apoio ao trabalho do Intercept na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Greenwald declarou emocionado: “Eu não vou deixar o país dos meus filhos regredir para uma ditadura, eu não vou.”

O vice-presidente da ABI, Cid Benjamin vê com “muita preocupação [o cenário atual] em que jornalista é visto como inimigo. A democracia está ameaçada”.

A tentativa de intimidação a jornalistas está inserida em um contexto generalizado de combate ao conhecimento. Até alterar a Lei de Acesso à Informação a atual administração tentou. Em mais de meio ano de mandato, Jair Bolsonaro vem destruindo, diariamente, conselhos, comissões, repartições e institutos para esconder números,  informações e dados. Exonerou o presidente do INPE porque não quer a divulgação do tamanho do desmatamento na Amazônia; está desmontando o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade para minar a fiscalização, para esconder informação; expeliu o general Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo que não aceitou ingerência em peças publicitárias das estatais, como uma propagando do Banco do Brasil que tratava de diversidade racial e foi tirada do ar pelo próprio presidente. E aí tem os cortes na educação, o sucateamento das escolas públicas.

No final de junho, Bolsonaro trocou quatro dos sete integrantes da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, que trabalha no reconhecimento de mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Os novos indicados têm perfis mais simpáticos a 1964. Um dos novos membros é o deputado federal Filipe Barros (PSL-PR). Barros protocolou na Procuradoria-Geral da República um pedido de prisão temporária do jornalista por causa das reportagens no Intercept.

Greenwald é atacado e criticado até por colegas de profissão e não só nas redes sociais, mas em jornais, TVs e rádios. O diretor de Jornalismo da Jovem Pan, Felipe Moura Brasil, ironizou a reação de Glenn sobre a portaria 666, editada por Moro, vista como uma tentativa de intimidá-lo por permitir a deportação sumária de estrangeiros. “A política de segurança pública do Brasil não pode parar simplesmente por pavor de ferir a suscetibilidade de um americano envolvido na divulgação de mensagens roubadas”, disse Brasil.

Como Glenn é casado com brasileiro e tem filhos aqui, dificilmente corre risco. Mas a portaria é vista com receio por correspondentes estrangeiros pelo texto bastante genérico. Segundo a redação, o caso de deportação se aplicará a quem “tenha praticado ato contrário aos princípios e objetivos dispostos na Constituição Federal”.

Os ataques não têm limites, tentam desqualificar Greenwald profissionalmente e miná-lo física e psicologicamente. Não ficam apenas nas ameaças de prisão de Bolsonaro ou na tentativa de vincular o Intercept de forma delituosa aos quatro jovens de Araraquara. “Meu marido já denunciou que estão usando dados privados sobre nossa família, filhos e casa. Ele quer que fiquemos com medo e apreensão. Não temos medo nenhum. Continuamos publicando depois disso”, disse Greenwald em depoimento no Senado.

Uma das agressões mais doloridas veio enquanto o americano estava com a família visitando a mãe, que sofre de câncer, e mora nos Estados Unidos. Apoiadores de Moro e Bolsonaro bombardearam o Facebook de Arlene Ehrlich Greenwald. Glenn respondeu: “Vou dedicar tudo o que tenho para garantir que esse sociopata que causou essa dor à minha mãe, no último estágio de sua vida, pague o máximo possível nos tribunais. Eu nunca experimentei nada tão monstruoso em 15 anos de jornalismo do que esses cretinos que apoiam Bolsonaro.” Em outro post, colado a uma reprodução de um texto de sua mãe, escreveu: “Às vezes, os atos mais feios e grotescos produzem graça, bondade e força inspiradora de caráter. Eu sinto muito pelo que foi feito para minha mãe por causa do meu trabalho, mas estou tão orgulhosa de como ela respondeu. Ela é quem me ensinou sobre coragem e consciência.”

Mesmo dez dias antes de vencer as eleições em segundo turno, ano passado, Bolsonaro intensificou os ataques para amordaçar jornalistas. Patricia Campos Mello, repórter da Folha de S. Paulo, foi alvo de ameaça e perseguição online e física após publicar, em 18 de outubro de 2018, uma reportagem que denunciava a compra massiva por empresários, apoiadores do candidato do PSL, de milhões de disparos de mensagens por WhatsApp, com o objetivo de prejudicar o PT na eleição. A prática é ilegal, pois se trata de doação de campanha não declarada por empresas, o que é vedada pela legislação eleitoral.

Além de perseguida, ela foi vítima de fake news. “Eu acho que o meu caso foi o  primeiro caso mais visível de uma coisa que se tornou a norma. Principalmente com mulher e é isso: são essas tentativas sistemáticas de intimidar e destruir a reputação de jornalistas mulheres. Começaram a fazer meme com a minha cara sempre com mentirosa, puta, vagabunda etc. E o Bolsonaro retuitou.”

O celular da jornalista foi hackeado e as ameaças ficaram mais físicas. “Tinha um cara que falava assim: se você quer a segurança do seu filho de seis anos saia do país. Isso não é uma ameaça, é um aviso. Um sujeito ligou no meu celular falando mais ou menos assim: ‘sua vagabunda comunista, eu estou indo na sua casa destruir a sua cara.’ Foi assustador.”

Os ataques resultaram em um inquérito policial, mas ao contrário da investigação do hackeamento ao celular de Moro, aparentemente não deu em nada. “A gente encaminhou tudo para a polícia, e abriram um inquérito. Eu não sei como a coisa está porque nunca me chamaram e nunca aconteceu nada.”

No caso da repórter, o presidente também usou instituições públicas como instrumentos de pressão. “O Bolsonaro está me processando, exigindo que a gente abra as fontes da matéria.”

Ela precisou de segurança particular. Fãs do militar-presidente passaram a segui-la. “Começaram a mandar para grupos de apoiadores tudo que eu ia fazer. Davam o endereço, o horário.” Mello acabou cancelando todos os compromissos públicos ao menos por um mês.

Para Patricia, a intimidação é fruto de uma ação muito bem planejada. “Quando ele [Bolsonaro] retuíta uma coisa, como no caso da Constança [Constança Rezende, repórter de O Estado de S. Paulo que escreveu sobre as investigações contra o filho mais velho do presidente, o Sen. Flávio Bolsonaro (PSL-RJ)], ele amplifica esse tipo de coisa e meio que dá uma senha para esses caras mais extremos, que estão fazendo uma intimidação orquestrada. A gente fica achando que essas coisas são orgânicas e voluntárias, e um pouco é, mas muito é orquestrado. Muitas vezes migra para o mundo real, como foi no meu caso.”

As agressões traumatizam. “Em maio, eu dei mais duas matérias sobre a história do WhatsApp, com os áudios, e antes de saírem eu fiquei em pânico porque eu pensei: ’vai começar tudo de novo’.”

O jornalista Denis Burgierman, repórter da revista Época, começou a ser perseguido depois que mexeu com o guru do governo e da família Bolsonaro, Olavo de Carvalho. Burgierman publicou, em março deste ano, uma matéria de capa sobre o curso oferecido pelo guru, intitulada “O que aprendi sendo aluno de Olavo de Carvalho por três meses”. Olavo não gostou do que leu e passou a postar palavrões. Chamou o texto de “merda”, “bosta”, “fraude” e o autor ele apelidou de “Bosterman” e “Bunderman”, como “bostinha”, “jumentinho”, “mentiroso abjeto”, “maconheiro”, “cocô de pato”, “analfabeto”, “filho da puta”, entre outras ofensas.

Denis faz uma análise do que está havendo: “De repente, o jornalista como inimigo virou um fato social e as pessoas se ofendem com a investigação jornalística. O que está acontecendo é estranho e ao longo do período [o que acontece] é que a mídia é inimiga do Brasil.”

Burgierman e sua família foram bastante ameaçados nas redes sociais. O caldo engrossou e a violência passou a ser mais física quando Olavo soube que o jornalista planejava publicar um livro sobre o curso. O guru e seus apoiadores subiram o tom. Como forma de intimidação, Carvalho publicou o endereço e uma foto da entrada da casa do jornalista, com o seguinte pedido: “Alguém aí pode, por favor, averiguar se o difamador profissional ainda mora neste endereço…” Diante das agressões ao repórter, a editora com a qual Burgierman negociava o livro desistiu da empreitada.

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) ingressou com representação junto ao Ministério Público de São Paulo, requerendo a apuração dos fatos e agressões a Denis. No documento, o Sindicato “reforça a preocupação do aumento expressivo de violência nas redes sociais e pede que o MP continue  intensificando o combate à disseminação de crimes de ódio e sua respectiva impunidade que desestimula o exercício da profissão”.

Outro profissional atacado é Juca Kfouri. Assim como Burgierman, Juca entrou com representação contra seu agressor, o corretor de imóveis José Emílio Joly Júnior, no Ministério Público. Joly mora em Curitiba, se declara ex-militar e é apoiador de Bolsonaro.

As agressões ao jornalista começaram no final do ano passado, após a eleição, e continuaram em 2019. Ele foi agredido em seu blog, no portal UOL. O corretor escreveu: “Lembre-se que a ditadura está no poder e os porões serão reabertos para ‘extinguir’ lixos como você, Juca. Cuidado!”; “Como ex-militar, eu adoraria uma missão para executar imbecis iguais a vocês do UOL e outros lixos”; “Juca.nalha. Sou ex-militar (Pelopes – Pelotão de Operações Especiais), e consigo achar qualquer animal, nem que seja no inferno”; “Um dia vou cruzar na sua frente e te encher de porrada na cara!”

Joly usava o e-mail da esposa. Depois que foi identificado e denunciado pelo colunista, parou com as ameaças. O profissional, que já atuava como jornalismo sob o regime militar e lutou contra o golpe de 1964, surpreende-se com o momento atual. “Jamais imaginei, quando tinha 18, 19 anos e militava contra a ditadura, que viveria uma situação semelhante. Uma situação de absoluto obscurantismo. Ministros e os filhos do presidente… Milicianos tão próximos ao poder… O que me resta é denunciar isso e resistir a isso. O DOI-Codi, que infelizmente eu conheci, não me impediu de lutar pelas coisas que eu achava que devia lutar, não vai ser agora, avô, aos quase 70, que eu vou deixar de lutar.”

Miriam Leitão, da TV Globo e do jornal O Globo, que volta e meia critica declarações do presidente, tais como elogios e homenagens ao falecido coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, apontado pela Comissão da Verdade como responsável por torturas, além de 47 sequestros e homicídios durante o regime militar, foi caluniada pelo próprio Bolsonaro e por defensores do governo. Ele chegou a dizer que a jornalista, que ficou na prisão por três meses e passou por sessões de tortura durante a gravidez, em 1972, nunca havia sido torturada. As mentiras inflamaram apoiadores do presidente e impulsionaram fake news sobre Miriam.

Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, após compartilhar no Twitter notícia sobre uma menina de treze anos, que teria sido estuprada pelo pai e ameaçada com um revólver, foi alvo de intimidação de apoiadores e deputados bolsonaristas. Bergamo expôs o fato do pai manter arma dentro de casa. A jornalista fez referência clara à flexbilização da posse de armas por parte do governo Bolsonaro.

Leonardo Sakamoto, colunista do UOL e diretor da ONG Repórter Brasil, despertou ira por suas reportagens e artigos. Sofreu ameaças de bolsonaristas, do tipo: “É só me dar uma arma que meto uma bala no meio da cara desse filho da puta!” Marina Dias e Rubens Valente, da Folha de S. Paulo, passaram a ser agredidos por causa de   reportagem sobre a ex-mulher de Bolsonaro, que dizia ter sido ameaçada pelo ex-marido.

Ao escrever sobre o livro “O Cadete e o Capitão”, do colega Luiz Maklouf de Carvalho, Rubens Valente lembra que o ódio do presidente à liberdade de imprensa não nasceu agora. O livro detalha o processo militar, no final dos anos 1980, em que Bolsonaro foi acusado de elaborar um plano terrorista de explodir bombas em unidades militares. A acusação levou em conta uma reportagem da revista Veja, da repórter Cassia Maria.

No livro, constata o jornalista da Folha, Maklouf conta como ministros do Superior Tribunal Militar, em Brasília, distorceram “documentos e depoimentos para livrar Bolsonaro de uma condenação e focar no que eles entenderam ser o verdadeiro inimigo: a imprensa”. E, Valente conclui: “Mais de 30 anos depois, ainda impressiona ler as acusações e infâmias lançadas por Bolsonaro e pelos ministros contra a Veja e a então repórter Cassia Maria.”

A perseguição a profissionais de imprensa não fica nas ameaças e intimidações. Alguns jornalistas acabaram afastados, demitidos ou não tiveram contratos renovados a pedido de Bolsonaro ou de colaboradores e apoiadores. O exemplo mais conhecido foi o de Paulo Henrique Amorim, um crítico voraz do atual governo. Paulo Henrique morreu duas semanas após ser retirado da apresentação do programa Domingo Espetacular, da TV Record. A irmã Marília Amorim desabafou. “Ele já conhecia isso (retaliações por conta do trabalho), mas claro que sempre é um baque forte. Parece que dessa vez foi demais e ele não aguentou.”

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