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Comunicação pública, lógica privada

Comunicação pública, lógica privada

Em 16 de agosto do ano passado, um assessor de imprensa foi flagrado dizendo a verdade. O flagrante custou o seu emprego.

Aconteceu durante uma reunião da Comissão Municipal de Acesso à Informação (Cmai) da cidade de São Paulo, que reúne representantes de seis secretarias, além do gabinete da prefeitura e da Controladoria-Geral do Município, e tem como missão definir as políticas de transparência do município. Também dá a palavra final sobre os pedidos feitos via Lei de Acesso à Informação (LAI) que são negados nas duas primeiras instâncias. No áudio da reunião, que veio a público numa reportagem de O Estado de S.Paulo em 8 de novembro, o assessor de imprensa Lucas Tavares, chefe de gabinete da Secretaria Especial de Comunicação (Secom) da prefeitura de São Paulo, fala em “dificultar a vida” dos jornalistas “chatos” que fazem pedidos de informação.

Sancionada em 2011, a LAI entrou em vigor em maio de 2012 e se revelou uma mina de ouro para os jornalistas, que passaram a usar a nova legislação para ter acesso a informações que os assessores de imprensa barravam. A legislação regulamenta o acesso à informação pública, prevista na Constituição, e afirma que a publicidade é a regra e o sigilo, exceção. Qualquer cidadão pode pedir as informações que quiser, devendo se identificar, mas sem necessidade de dizer os motivos de sua solicitação.

Embora os participantes da reunião da Cmai devessem tomar suas decisões sem conhecer os autores dos pedidos de informação, conforme as próprias regras internas, o assessor de imprensa menciona, ao longo do encontro, os nomes de três: Luiz Fernando Toledo, repórter de O Estado de S.Paulo, Roberta Giacomoni, produtora da TV Globo, e William Cardoso, repórter do Agora SP. Segundo Tavares, os três faziam parte de um “ranking mental” que o assessor mantinha com o nome dos jornalistas campeões de pedidos via LAI. Sobre Roberta, afirma que é “uma das produtoras mais chatas que existem no planeta Terra” e acrescenta: “Agora, dentro do que é formal e legal, do que eu puder dificultar a vida da Roberta, eu vou botar pra dificultar”.

Comentando a LAI, Tavares afirma que, “do ponto de vista que gere a comunicação, ela tem um viés que é um saco”, pois “dá trabalho, gera crise”, mas que é “um instrumento importantíssimo”. Sem desrespeitar a legislação, recomenda atender aos pedidos dos jornalistas, mas “sem facilitar”. Sugere que o repórter William Cardoso seja chamado a buscar pessoalmente uma informação que poderia ser disponibilizada online. “Agora vou ser um pouco político aqui. Vou ser mauzinho, não bonzinho. Ele que vá lá pegar. Eu não quero facilitar a vida do William. Do ponto de vista da comunicação, isso vai me dar um trabalho depois”, afirma. Pouco depois, acrescenta: “Aí demora dois meses pra disponibilizar, ele desiste da matéria”.

O que aparecia no áudio não era uma grande novidade para jornalistas que cobrem o setor público brasileiro em qualquer nível. Quem é do meio coleciona histórias de assessores de imprensa que de alguma maneira tentam dificultar o acesso a informações que deveriam ser públicas. “Todo mundo sabe que isso existe, mas poucas vezes se viu uma demonstração tão explícita”, conta o repórter Luiz Fernando Toledo, um dos “chatos” mencionados anteriormente e autor da reportagem que trouxe à tona a gravação. “Fiquei surpreso, sim, pelo fato de as palavras serem ditas no meio de tanta gente e numa reunião oficial, o que deixa claro que não havia uma preocupação em ocultar a metodologia de trabalho”, afirma.

“Quando fiz a matéria, evitei ficar focado na figura do assessor, mas foi assim que a prefeitura encarou”, continua Toledo. No mesmo dia em que a reportagem foi publicada, o então prefeito João Doria (PSDB) demitiu o assessor, dizendo que Tavares “falou o que não devia e agiu como não deveria”. Jornalistas que cobrem a gestão municipal, porém, disseram à reportagem da Pública que Tavares teria servido de bode expiatório, já que ele não agia diferente de outros assessores. O secretário de Comunicação, Fabio Santos, chefe de Tavares, também não apontou que a saída do subordinado tenha produzido qualquer mudança na comunicação da prefeitura.

Comunicadores públicos, lógica privada

O jogo de gato e rato que se estabelece entre jornalistas e assessores de imprensa do Estado e a disputa que travam por informações públicas costumam ser vistos como normal por muitos profissionais. O próprio Toledo afirma: “Faz parte do jogo os assessores quererem dificultar um pouco, e faz parte do jogo a gente querer acesso às informações públicas”, diz.

Eugênio Bucci, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, não acredita que a estratégia deveria ser encarada com naturalidade. “É normal porque faz parte de uma norma tácita dos costumes políticos do Brasil, mas não deveria ser normal à luz da natureza democrática que precisa ter a informação no estado de direito. As informações que constituem matéria de interesse público não podem ser administradas como se fossem uma propriedade privada e usadas para beneficiar um gestor público”, afirma. “Os comunicadores do Estado brasileiro acham que ainda estão na República Velha”, continua, referindo-se à época em que as oligarquias se perpetuavam no poder falsificando eleições e manipulando as instituições públicas.

Bucci, que é conselheiro da Pública, conhece bem a comunicação estatal brasileira. É membro do conselho da Fundação Padre Anchieta e, entre 2003 e 2005, presidiu a Radiobrás, empresa de comunicação pública hoje incorporada à EBC. Em 2015, lançou o livro O Estado de Narciso: a comunicação pública a serviço da vaidade particular (Companhia das Letras), no qual afirma: “No imaginário dos gabinetes de todas as instâncias do Poder Executivo – todas mesmo, é bom saber –, governar é travar o combate das palavras e das imagens. O inimigo de costume é a imprensa, naturalmente. Se os jornais realçam os defeitos do poder público, a comunicação oficial vem para dar cobertura às pretensas virtudes do mesmo poder”.

Os assessores de imprensa a serviço do Estado, segundo Bucci, trabalham seguindo critérios de marketing político que contrariam boa parte dos cinco princípios da administração pública, previstos no artigo 37 da Constituição Federal: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência – que os estudantes para concurso costumam decorar usando a sigla L.I.M.P.E. Esse viés pode ocorrer tanto com funcionários contratados pelo próprio Estado, concursados ou de confiança, quanto com agências de comunicação privadas contratadas para gerir a comunicação pública – embora no caso dessas empresas a chance de conflito de interesses seja maior. “Muitas vezes, a conduta não varia de acordo com o vínculo estatutário ou funcional das equipes que estão encarregadas dessa atividade. Agora, é claro que o poder público, ao contratar no mercado o serviço de gestão de informação, traz para dentro do Estado uma cultura e uma mentalidade que é própria da concorrência econômica. No âmbito das empresas e do mercado privado, a informação é tratada como um ativo ou como um bem estratégico para obter vantagem sobre a concorrência”, aponta.

O nó da questão, para Bucci, é que os comunicadores do Estado costumam lidar com a informação pública utilizando os mesmos critérios de uma empresa privada, como se tivessem a missão de servir ao político que os contratou, e não ao público que paga seu salário. “Um comunicador de uma empresa privada trabalha legítima e legalmente em prol dos lucros daquela organização. Faz parte da regra do jogo. Mas um comunicador dentro do Estado trabalha para a sociedade, não para a pessoa que está incumbida da função pública”, define.

Outro especialista em comunicação pública enxerga os mesmos desafios, mas vê também uma “realidade diversificada” no setor, com espaço para avanços. “Há estruturas de comunicação muito profissionais e comprometidas com o interesse público, e não são poucas. Desde a obrigação da contratação por concurso público, resultado da Constituição de 1988, houve um salto de qualidade na gestão da comunicação no serviço público. As estruturas e processos ficaram mais profissionais e há muita seriedade no trabalho dos comunicadores. Mas, evidentemente, não é em todo lugar”, afirma o jornalista Jorge Duarte, diretor da Associação Brasileira de Comunicação Pública e organizador do livro Comunicação pública: Estado, mercado, sociedade e interesse público (Atlas, 2007).

Uma das pedras no caminho de assessores de imprensa que busquem trabalhar segundo os interesses do público, segundo Duarte, está nos gestores que fazem “pressão por uma atuação em favor de uma agenda política do grupo que está no poder em detrimento da agenda corporativa do serviço público”. Para ele, o papel dos comunicadores é claro: “Comunicação pública deve estar vinculada ao interesse público e ter como objetivo o atendimento às necessidades do cidadão”. Mas, para poder trabalhar segundo esses princípios, falta combinar com os russos – no caso, os políticos. “Há gestores públicos que tentam usar estruturas de comunicação da área pública para obter visibilidade pessoal, ocultar fatos ou tentar manipular a percepção pública para a realidade, e os profissionais de comunicação nem sempre são bem-sucedidos ao enfrentar esse tipo de distorção”, aponta.

O filé dos órgãos públicos

A figura dos assessores de imprensa mudou bastante no Brasil desde a última década. Quando surgiram, nos anos 1970 e 1980, eram jornalistas egressos das redações contratados por empresas e outras instituições para cuidar da relação com a mídia. Embora o trabalho fosse diferente, muitos continuavam a se ver como jornalistas – e são reconhecidos assim pelo sindicato da categoria. Desde a virada do milênio, contudo, as empresas de assessoria de imprensa deram lugar às agências de comunicação, que seguem um modelo mais parecido com o trabalho de public relations existente em outros países, em que a ponte com os veículos de mídia é apenas um dos itens de um vasto cardápio de serviços oferecidos.

Um levantamento feito pela Abracom (Associação Brasileira das Agências de Comunicação) listou um portfólio de 65 produtos e serviços que são vendidos pelas empresas do setor, que incluem itens como comunicação interna, produção de conteúdos para redes sociais, relacionamento com comunidades, investidores e órgãos de governo ou treinamento de executivos para falarem em coletivas de imprensa ou mesmo em reuniões com seus pares. “As empresas perceberam que todo o possível público com quem se relacionam precisa ser atingido. A imprensa não chega a todos os públicos e, hoje, com a pulverização dos meios, chega a menos ainda”, explica Carlos Henrique Carvalho, presidente executivo da Abracom.

Carvalho conta que o poder de fogo das agências de comunicação cresceu a tal ponto que empresas como a mineradora Vale as contratam para fazer o atendimento a comunidades pobres que são atingidas pelos seus projetos, levando informações sobre a empresa e atuando como ouvidoria, coletando as queixas da população. Em 2015, após o rompimento da barragem em Mariana (MG) provocar um dos maiores desastres ambientais da história do Brasil, a mineradora Samarco, responsável pelo acidente, encarregou as agências de comunicação não só do relacionamento com jornalistas, mas de fazer a ponte com políticos, agentes do governo e com a comunidade. “A equipe de comunicação contratou antropólogos e psicólogos para ter o suporte de outras áreas para lidar com a situação”, relata Carvalho.

O setor reúne atualmente 1.500 empresas, conforme dados do Anuário de comunicação corporativa 2018, elaborado pela Mega Brasil – há dez anos eram 400. Juntas, faturam cerca de R$ 2,5 bilhões e empregam 16 mil pessoas. O segmento movimenta mais dinheiro no Brasil do que a indústria de brinquedos, de sorvetes, games ou de celulose, como ressalta a Abracom em um de seus materiais.

Um filé cobiçado desse mercado são justamente as contas das áreas públicas. “Uma boa conta pública, de um grande ministério ou de um governo estadual, equivalem a três ou quatro bons clientes privados”, compara o presidente da Abracom. A entrada das agências de comunicação nas licitações públicas, contudo, é uma história nova, iniciada em meados da década passada. Até então, lembra Carvalho, a comunicação dos governos era quase toda baseada em publicidade e marketing (“Achavam que bastava colocar uma propaganda no horário nobre do Jornal Nacional e estava resolvido o problema de comunicação”), e era costume o Estado fazer contratos com agências de publicidade que, por sua vez, subcontratavam outros serviços, inclusive os de assessoria de imprensa.

Na esteira do mensalão e outros escândalos envolvendo agências de publicidade, a virada se deu a partir de 2006, quando uma decisão do Tribunal de Contas da União (TCU) proibiu a subcontratação de serviços de comunicação por essas agências nos contratos da Embratur, e se consolidou em 2010, quando a Lei 12.232, proposta pelo deputado federal José Eduardo Cardoso, vetou a inclusão de serviços de assessoria de imprensa, comunicação e relações públicas nas licitações de publicidade.

O efeito foi rápido. Quando a Abracom foi fundada, em 2002, o dinheiro que circulava pelas agências de comunicação era quase todo privado. Hoje, o presidente da associação estima que as licitações do Estado sejam responsáveis por 10% a 15% do faturamento do setor. A FSB, empresa que no ano passado liderou o ranking de faturamento do setor, registrado no Anuário, com R$ 215 milhões – seguida por CDN|CDB (R$ 172 milhões), Grupo In Press (R$ 115 milhões), Grupo TV1 (R$ 107 milhões) e Máquina Cohn & Wolfe (R$ 80 milhões) –, mantém um setor específico para contas públicas, que reúne aproximadamente um terço de seus funcionários.

É uma briga de gente grande. Uma pesquisa da empresa Mega Brasil, especializada em publicações e eventos na área de comunicação corporativa, constatou que apenas 22,3% das agências participam de licitações públicas, e, entre os motivos mencionados para não entrar na disputa, estão as exigências excessivas, o alto custo e a falta de estrutura para atender às demandas governamentais. E não há muitos alvos para serem disputados. Segundo Carvalho, as contas públicas de fato valiosas são relativamente poucas: os 23 ministérios, algumas autarquias e empresas públicas federais, como a Petrobras, os governos de São Paulo, Minas Gerais e do Rio de Janeiro (que a crise econômica transformou atualmente em um mau pagador e, portanto, em mau negócio), e, fora do eixo Sudeste/Brasília, empresas como a Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa) e a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa).

Na área pública, a comunicação pode ficar a cargo tanto de servidores de carreira, aprovados em concurso, como de funcionários comissionados em cargos de confiança – e é cada vez mais comum ver gestores preenchendo esses cargos com profissionais oriundos das agências de comunicação. A partir de 2006, o Estado também recorre aos serviços terceirizados das agências, algo que o especialista Jorge Duarte vê com bons olhos, já que essas empresas têm “a capacidade de fornecimento de uma grande diversidade de soluções de comunicação que, muitas vezes, a estrutura disponível na administração pública não tem capacidade de dar na qualidade ou no tempo necessário”. O problema aparece, segundo Duarte, quando as agências assumem um papel maior do que deveriam, desempenhando funções como a definição de estratégias e elaboração do planejamento – que deveriam vir dos próprios órgãos públicos, não de empresas privadas. “Não pode existir o risco, por exemplo, de uma agência definir o que é prioridade para uma organização, o que deve ser feito, os serviços prioritários, e ela mesmo entregar esses produtos”, diz. O modelo ideal, segundo Duarte, é deixar profissionais de carreira gerenciando os contratos dessas empresas, para garantir que forneçam serviços complementares aos que já são feitos pelos concursados.

Mais assessores, mais controle

Apesar da força, o mercado não passou ileso pela crise econômica: no ano passado, o faturamento das agências de comunicação caiu 1,2% na comparação com 2016. Os dados indicam, porém, que a vida ainda está melhor lá do que no outro lado do balcão. Na maioria das redações tradicionais, as notícias mais comuns se referem à demissão em massa de jornalistas, conhecidas como “passaralhos”, e o fechamento de alguns veículos. Um projeto do Volt Data Lab, que monitora as demissões de jornalistas, revela que os “passaralhos” das redações colocaram na rua 2.123 jornalistas entre 2012 e abril de 2017.

Um exemplo de como a profissionalização da comunicação de governo pode dificultar a vida dos jornalistas é relatado pelo repórter Josmar Jozino, autor de três livros sobre o PCC que cobriu a segurança pública em São Paulo por mais de 40 anos. Segundo Josmar, o acesso a informações policiais que deveriam ser públicas se tornou cada vez mais difícil a partir dos anos 2000, quando a comunicação da Secretaria da Segurança Pública do governo paulista passou a ser feita por agências de comunicação privadas: Atelier, CDN e, atualmente, a In Press, que assinou neste ano um contrato de 15 meses no valor de R$ 3,4 milhões pelo serviço.

A profissionalização da comunicação na Segurança Pública buscou centralizar as informações na assessoria de imprensa e impedir o acesso dos jornalistas a outras fontes, principalmente aos registros dos crimes, os Boletins de Ocorrência. “Antes, a gente ia na delegacia e no cartório, pedia o B.O. e eles davam até cópia. Hoje, tem que ligar para pegar os dados com a assessoria de imprensa. O direito do jornalista apurar é censurado”, diz.

“A Secretaria de Segurança, com três jornalistas, disponibilizava tudo para a gente, quantos homicídios ocorriam, quantos assaltos a banco tinha. Hoje, tem 30 assessores e ninguém passa nada. As empresas que fazem a assessoria ganham muito dinheiro e você mal consegue apurar”, compara. É como se, quanto mais assessores, menos informação os jornalistas conseguissem acessar. “Eu me dou muito bem com os assessores de imprensa, mas já tive vários quebra-paus feios. Eu entendo que são todos colegas meus trabalhando lá, cumprindo ordem, então com o tempo eu aprendi a entender isso”, diz Josmar. “Tem colegas que não entendem isso, que o assessor está lá para esconder mesmo, não está ali para divulgar tudo que acontece. Transparência é uma mentira”, conclui.

Para Carlos Carvalho, presidente da Abracom, a transparência da comunicação pública esbarra numa “linha tênue” entre as informações que devem ser públicas e as carreiras políticas dos gestores. “A gente tem que achar uma fórmula na sociedade brasileira que permita o máximo de equilíbrio possível e em que a balança penda mais para a comunicação pública do que para a comunicação de governo”, afirma.

O presidente da Abracom considera natural que os assessores de imprensa de órgãos públicos não estejam ali para servir aos cidadãos, já que sua função não é uma atividade de caráter público, como o jornalismo. “Não consideramos nossos profissionais como jornalistas. Eles podem ter formação em jornalismo, mas fazem outra coisa. É o contrário do jornalismo, num certo sentido”, afirma Carvalho. Ainda que não possa mentir, o assessor de imprensa, na sua visão, não tem obrigação de revelar toda a verdade se não for indagado. E dá um exemplo: “Tinha um assessor de um conhecido político que sempre dizia que ‘fulano não tem conta em seu nome no exterior’, e ele não estava mentindo, porque as contas na Suíça são numeradas”. É um comportamento que se encaixa perfeitamente na ética do assessor de imprensa, já que, mesmo pago com dinheiro público, sua lealdade não está com o público. “O profissional de public relations representa uma instituição, seja pública ou privada. Ele não está a serviço da sociedade, mesmo no setor público”.

O segmento movimenta mais dinheiro no Brasil do que a indústria de brinquedos, de sorvetes, games ou de celulose, como ressalta a Abracom em um de seus materiais. Arte: Bruno Fonseca/Agência Pública

“Omitir faz parte”, diz ex-assessor da prefeitura

Lucas Tavares recebe a reportagem na sua casa, um sobrado na zona sul de São Paulo. É manhã de uma terça-feira de junho e ele se mostra à vontade, chinelos de dedo e calça rasgada de ficar em casa. Continua desempregado, sete meses após sua demissão, que interrompeu temporariamente uma carreira até então bem-sucedida de dez anos na comunicação corporativa, inclusive como especialista em gestão de crise (“Apesar de ter sido vítima de uma”, ressaltou).

Antes da prefeitura de São Paulo, trabalhou na Fundação Casa, no Palácio dos Bandeirantes e na Secretaria da Segurança Pública. Guarda orgulhos do seu trabalho de repórter (“Fui o primeiro cara que falou sobre o coronel Lima [Coronel João Baptista Lima Filho, amigo do presidente Michel Temer hoje investigado pela Polícia Federal], numa coluna de política da Tribuna de Santos”) e também da comunicação corporativa (“Fiz a primeira e única campanha publicitária da Fundação Casa, para mostrar que aquilo estava mudando”).

A conversa se deu no quintal, tomando café, enquanto Tavares fumava um cigarro atrás do outro. “Voltei a fumar depois que fui demitido”, conta. A demissão o abalou.

O Tavares da entrevista parece bem diferente do inimigo da imprensa que o diálogo gravado revelou. Bonachão, quando fala emenda um palavrão atrás do outro. Acredita que foi essa característica que o prejudicou no diálogo gravado. “Ali era o Lucas brincalhão, falando coisas que falaria num boteco, sem ter bebido. Foram frases infelizes, que eu não deveria ter falado. Mas não cometi crime: todas as votações foram corretas. Paguei pela língua, por ser informal demais”, diz. “Mas paguei caro para cacete por isso. Me custou muito. Custou minha reputação.”

Por que mencionar na reunião da comissão os nomes dos jornalistas que tinham feito os pedidos? Era uma “brincadeira”, segundo ele, que consistia em tentar adivinhar quem era o autor com base no estilo do texto do pedido. “Eu olhava para os caras da Controladoria e falava: ‘Isso aqui está com cara de pedido de imprensa, deve ser do Toledo’. Eles riam: ‘É do Toledo’. Em tese era para ser sigiloso, mas era informal a conversa”, diz. E chamar os jornalistas de chatos? “Dizer que repórter é chato é elogio. O bom repórter tem que ser chato. Repórter cordeirinho não presta”, diz.

Ao falar sobre o papel da assessoria de imprensa – ou relações públicas, como ele prefere, já que o trabalho engloba mais do que as relações com a mídia –, ele pinta um retrato cru da atividade.

“Omitir faz parte”, afirma. “O relações-públicas só não pode cometer dois pecados: mentir e obstar a fiscalização por entes externos, sejam jornalistas ou órgãos competentes. Tem assessoria que mente? Tem, mas não está certo. Eu acho criminoso. Eu nunca menti. Posso garantir a você. Mas, ainda eticamente, é possível omitir”, diz.

Na sua visão, a “omissão com ética” é necessária para que o assessor cumpra sua missão, que é “garantir o posicionamento estratégico de uma marca” e entrar na disputa pelas narrativas mais convincentes. Na construção da marca, carne e cargo acabam se misturando. “O que é a marca? A marca é a instituição, no caso, a prefeitura ou o governo, mas isso se confunde com a figura que foi eleita. A marca João Doria, a marca Geraldo Alckmin… acabam se confundindo”, diz.

Durante a entrevista, Tavares dá exemplos de como seria possível omitir com ética. “Se eu souber que existe um problema em tal lugar, não vou fazer uma divulgação proativa do problema, porque eu estaria em tese contribuindo negativamente para o posicionamento da marca. Mas eu tento resolver o problema antes.” Outra manobra usada pelos assessores para omissões éticas é “dormir” ou “se fingir de morto” em relação às solicitações incômodas. “‘Dormir’ que eu falo é: se o cara não ligar cobrando, deixa quieto.”

Tavares conta que, quando os pedidos de informações diziam respeito a dados que, uma vez publicados, seriam muito incômodos para seus patrões, preferia sugerir aos repórteres que buscassem apurar por seus próprios meios e desencanassem de receber as informações via assessoria de imprensa. “Tem margens para ‘cansar o cara’, que é fazer com que ele vá atrás e eu não tenha que produzir para o repórter informações que não me sejam interessantes. Faz parte de um jogo. Não estou impedindo o trabalho do cara, mas não me é interessante, do ponto de vista mais amplo de relações públicas, que eu faça isso para ele. Isso acontece em qualquer assessoria de imprensa”, explica. “Muitas vezes eu falava isso para os repórteres: ‘Velho, eu não vou levantar isso para você porque não me interessa, vai pelo teu caminho’. E os caras iam. Não gosto de ficar enrolando.”

Indagado se ele considera aceitável que um relações públicas omita informação quando é pago com dinheiro público, Tavares faz alguns segundos de silêncio, exala mais lentamente a fumaça do cigarro. É uma questão sobre a qual não costuma pensar. “Boa pergunta”, diz, por fim. E prossegue: “Há um imperativo categórico entre as assessorias, uma cultura que herdamos

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