Do meu pai herdei as ranhuras das unhas, o brilho no olhar por uma cachoeira gelada, o apreço pela autenticidade das coisas e os Direitos Humanos como religião. O Jornalismo é de pai e mãe. Ninguém me forçou – e nem impediu, apesar de tudo. Foi estranhamente natural.
Com meu pai aprendi a pegar a antiga Revista da Folha (hoje Revista sãopaulo) e começar a ler pela última página, a da Barbara Gancia. Não foram poucas as vezes em que ele havia acordado mais cedo do que eu aos fins de semana e eu o encontrava na cozinha tomando café da manhã com o jornal ao lado. Já tinha separado as páginas que queria que eu visse, especialmente a do José Simão. E compartilhávamos uma espécie de amor incondicional pelas tirinhas do Fernando Gonsales e do André Dahmer. Muito por isso é que lamento que ele não tenha ficado para ver daqui a mobilização de chargistas encabeçada pelo JAL, cada um com uma interpretação de quem era Audálio Dantas. Destaco uma, em especial, a do Eduardo Baptistão.
Além da assombrosa semelhança dos traços e até de vestimenta, Baptistão me fez refletir sobre uma condição que regeu meu pai por absolutamente toda a vida: a de quem travou batalhas quixotescas armado única e exclusivamente de papel e caneta.
As lutas não foram poucas e começaram ainda cedo, quando aprendeu a ler e a escrever de maneira autodidata em Tanque d’Arca, no Alagoas. Na sequência, as batalhas viriam à capital paulista, às redações da Folha da Manhã (atualmente Folha de S.Paulo), de O Cruzeiro, da Realidade, da Quatro Rodas… Escrevendo livros, descobrindo Carolina Maria de Jesus e batendo de frente com o II Exército para dizer que não, não foi suicídio; a ditadura assassinou Vladimir Herzog sob tortura. Sempre: munido de papel, caneta – e coragem.
No velório de meu pai, na sede do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo, de onde foi presidente justamente quando o regime militar matou o Vlado, alguém chamou a atenção para um ponto a respeito do qual eu nunca havia pensado: Audálio Dantas teve a vida permeada por indignação, mas nunca pela raiva. Tenho me questionado sobre onde mora essa linha tênue entre as duas condições e, mais do que isso, qual é o lugar de resistência eficaz. Como conseguir andar com retidão sobre esta corda bamba?
Um país que dá conta de esquecer um passado recente brutal e abriga gente que, por vezes, pede a volta do regime militar, tem algo da política educacional que definitivamente falhou. E não por coincidência é a mesma nação que amarga números vergonhosos de desigualdade social, encarceramento em massa, violência contra a mulher, contra negros e tira a vida de cidadãos pura e simplesmente pela orientação sexual.
Como encontrar um caminho agregador ficou pra nós como desafio. E, talvez, em tempos de ânimos tão exacerbados, nos caiba o caminho da informação e da generosidade. Machistas, fascistas, racistas não passarão? Se não passarem, ficamos todos lá atrás, amarrados – um exercendo opressão e o outro oprimindo – porque, bom, bem ou mal vivemos em sociedade.
Os temas progressistas, que por algum acidente de percurso incerto a olho nu, estão rotulados como de esquerda, deste ou daquele partido. Mas acredito que nós, jornalisticamente ou não, nos nossos trabalhos ou nas nossas vidas cidadãs, precisamos falar sobre o que nos ajudará a alçar novos patamares civilizatórios: educação, cultura, a aplicação de ações afirmativas, tirar do campo policial questões de saúde pública (como aborto ou drogas), estancar o sangue derramado pelo extermínio negro, gay e feminino, o acesso aos cuidados paliativos, à Justiça Restaurativa – entre outros.
Temo que as curtidas das nossas bolhas das redes sociais estejam nos deixando com a falsa sensação de dever cumprido com um post ou outro da chamada lacração. Não é suficiente. Esperar que a política seja feita por uma entidade externa ou que a gente dependa só das urnas nos deixa exatamente neste lugar de desesperança e estagnação em que nos encontramos.
Indignação pede resistência, persistência.
Neste 8 de julho, Audálio Dantas faria 89 anos de uma vida tão vivida. Faz falta, é verdade. No entanto, creio que o nosso lugar deva ser outro, que não o do lamento. O jornalista Sérgio Gomes, um dos principais parceiros do meu pai, foi um dos que organizaram a última festa de aniversário dele. O palco, novamente, foi o Sindicato dos Jornalistas. As homenagens foram guiadas pelo mote “Indignação, coragem e esperança”. A inspiração de Serjão veio de Santo Agostinho, que escreveu: “A esperança tem duas filhas lindas: a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las”.
Reverberemos. Mas nunca com raiva.