As eleições municipais realizadas no dia 5 de outubro, em primeiro turno, foram amplamente cobertas pelos veículos de comunicação. Articulistas e comentaristas analisaram os resultados, enquanto parte significativa dos jornalistas estava nas ruas, buscando informações in loco e acompanhando os candidatos durante a votação e a apuração.
O volume de informações produzido pelos veículos e a cobertura jornalística, infelizmente, contrastaram com a cobertura realizada pelos veículos da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Por causa da intransigência da direção da empresa, os jornalistas da maior empresa pública de comunicação do país protagonizaram uma greve histórica durante o período eleitoral, em luta pela isonomia salarial em relação a outras categorias de nível superior da empresa. O novo Plano de Carreiras e Remunerações (PCR) apresentado pela direção diferenciava os salários dos trabalhadores em cargos de ensino superior. Ele levava em conta a hora trabalhada de cada empregado, ignorando as jornadas específicas previstas em lei das atividades profissionais, como as de jornalista (5 horas) e radialista (de 6 a 8 horas). A greve promovida pelos jornalistas da EBC chegou ao alto escalão do governo, e levou a uma intervenção do próprio ministro da Secretaria de Comunicação da República (Secom), Paulo Pimenta, que se reuniu com os sindicatos de jornalistas em busca de uma saída para o impasse. No início de novembro, a direção da empresa apresentou nova proposta, corrigindo o erro e adequando a proposta da empresa às demandas da categoria – uma conquista obtida por meio da luta em defesa da jornada especial dos jornalistas.
Greve de jornalistas
Os jornalistas da EBC cruzaram os braços entre os dias 3 e 10 de outubro após aprovação em assembleia, por unanimidade, da paralisação. Ao todo, se somaram à greve cerca de 90% dos jornalistas do quadro efetivo das três praças (São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal), dos mais de 400 empregados da categoria. O movimento afetou os veículos públicos da empresa durante as eleições, alterando a rotina da Agência Brasil, Rádio Nacional, TV Brasil e a Radioagência Nacional, além dos canais de informação governamental, como o Canal Gov e a Agência Gov.
Os trabalhadores se viram obrigados a cruzar os braços após a empresa encerrar as negociações sobre o novo PCR. O Conselho de Administração (Consad) da EBC havia aprovado, no dia 23 de agosto, a proposta elaborada pela empresa e duramente contestada pelas entidades sindicais durante toda a negociação.
Ataque à jornada especial dos jornalistas
O que a direção apresentou para a Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (SEST), órgão ligado ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), foi uma proposta de PCR que previa diferenciação dos salários, levando em conta as horas de trabalho de cada atividade. Pela perspectiva da empresa, os jornalistas da EBC, área fim e principais produtores de conteúdo dos veículos da empresa, teriam um salário 12% menor em comparação a outras atividades de nível superior. A direção da empresa criaria uma diferença salarial entre jornalistas e empregados administrativos que poderia chegar a R$2.650,87, ignorando veementemente a jornada específica da categoria.
Em uma atitude antissindical, visando criar ruídos entre os trabalhadores, a empresa enviou uma previsão de aumento salarial para todos os empregados da EBC, mesmo não havendo acordo com as entidades sindicais, ou sequer uma previsão orçamentária para a execução do PCR. No comunicado produzido pela EBC havia a previsão de reajuste de até 50% nos salários de determinadas áreas. A irresponsabilidade da direção provocou divisões entre trabalhadores de diferentes categorias, causando desinformação entre os empregados da EBC.
Vale lembrar que a proposta apresentada pela empresa não era uma novidade. Ao longo dos mais de dez anos de discussão de um novo PCR, a ideia de calcular os salários levando em conta as horas trabalhadas já havia sido posta à mesa, e não foi aceita pelos trabalhadores, em mais de uma assembleia, ainda no ano de 2014. A mesma proposta havia sido enterrada em parecer de consultoria contratada pela empresa, também naquele ano, e não foi reapresentada às entidades sindicais em nenhum momento ao longo da negociação atual.
A direção da EBC manteve-se intransigente frente aos pedidos de reabertura de negociação e revisão do PCR. Desde julho os sindicatos dos jornalistas do Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo buscavam a direção da empresa para a solução do problema, sem respostas. Por conta disso, os jornalistas da EBC realizaram duas paralisações antes de decretarem a greve por tempo indeterminado. A primeira ocorreu nos dias 3 e 4 de setembro, e arrancou um compromisso da Secom de voltar à mesa de negociação, o que não foi cumprido naquele momento. Nos dias 25 e 26 de setembro, novamente os trabalhadores paralisaram as atividades, buscando um diálogo em que pudessem avançar nas demandas dos jornalistas. Sem respostas satisfatórias, no dia 03 de outubro teve início a greve, sem tempo determinado, que impactou no funcionamento da empresa durante as eleições municipais. Apesar de a paralisação ter sido aprovada mais de uma semana antes do primeiro turno das eleições, não houve qualquer sinalização da empresa aos jornalistas para buscar retomar as negociações, de forma que garantisse a cobertura eleitoral.
Secom
Com a greve avançando e sem data de retorno, o Ministro Paulo Pimenta (Secom) recebeu uma delegação dos sindicatos para mais uma conversa, visando o destravamento das negociações. Em uma reunião realizada presencialmente no dia 09 de outubro, no Palácio do salarial que não punisse a atividade jornalística da empresa, além de não realizar o corte de ponto dos empregados grevistas, ameaça enviada pela direção da empresa no início do movimento. Os trabalhadores encerraram a greve no dia 10 de outubro, mas mantiveram a assembleia aberta para avaliar o andamento do processo.
Em 4 de novembro, a direção da empresa se reuniu com os sindicatos dos jornalistas e dos radialistas das três praças para reapresentar o PCR, depois da greve dos jornalistas. Na proposta, finalmente, a empresa oficializou a unificação das tabelas salariais de nível superior, respeitando as jornadas específicas de cada profissão, e sem prejuízos para as outras categorias da empresa. Para que a proposta se concretize, ela ainda precisa passar pela SEST/MGI, em um processo que, segundo a direção da EBC, ainda deve levar cerca de quatro meses, sendo que a última etapa será a aprovação do orçamento. Os sindicatos seguem se reunindo com a empresa para discutir os descritivos das carreiras e sua progressão ao longo do tempo.
Histórico do PCR
A EBC foi criada em outubro de 2007 após ampla discussão na sociedade. Ela foi constituída a partir do patrimônio da antiga Radiobrás e de concessões de outras empresas públicas estaduais de comunicação. Os trabalhadores que migraram da antiga Radiobrás, e os que ingressaram nos concursos públicos da EBC, têm suas carreiras conduzidas por um Plano de Empregos, Carreiras e Salários (PECS), chamado pelos trabalhadores apenas de “PCR”. O atual PCR da EBC foi aprovado em 2009, a fim de adequar as demandas dos trabalhadores às necessidades da empresa. A grande questão é que ele impõe ao corpo dos empregados graves distorções, como a impossibilidade de remuneração adequada a cargos técnicos, acúmulos de função, níveis inalcançáveis de progressão na carreira, entre outros aspectos que fragilizam a relação interna de trabalho. O atual plano penaliza, sobretudo, os trabalhadores de ensino médio, parte significativa do corpo de funcionários da empresa.
Desde 2013 os trabalhadores da EBC demandam um novo PCR, para que se possa corrigir as distorções do plano atual. Ao longo desses anos, inúmeros grupos de trabalho foram constituídos e reuniões realizadas junto à direção, incluindo a contratação de uma consultoria, para tentar construir um consenso em torno de um documento. O golpe de 2016 enterrou o plano, e a batalha dos trabalhadores, naquele momento, concentrou-se na manutenção da empresa e dos empregos.
Com o retorno do presidente Lula ao governo, e a consequente mudança da direção da empresa, houve o entendimento de que o processo poderia ser resgatado. Constituiu-se um novo grupo de trabalho e, em 2023, mais uma vez, foram retomadas as discussões sobre o PCR.
As reuniões envolveram representantes da empresa e dos sindicatos presentes na base da EBC, composta pelos radialistas e jornalistas de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Distrito Federal. Foi mais de um ano de intenso trabalho, onde as entidades construíram uma proposta junto com os trabalhadores. Ao longo desse processo e das reuniões, a direção pouco agregou à elaboração do documento. As discussões se encerraram em julho de 2024 com a apresentação de uma proposta, por parte da empresa, que surpreendeu os integrantes do grupo de trabalho.
Além de distorções no material apresentado pelos sindicatos, continuavam no documento graves problemas de acúmulos de funções. A pior parte veio na tabela de remuneração das atividades. Na primeira proposta, o cálculo penalizava todos os trabalhadores da atividade fim da empresa, radialistas e jornalistas, atacando a jornada diferenciada dessas funções.
Rapidamente, as entidades apontaram o erro, e a empresa corrigiu os valores entre todos os cargos de nível médio/técnico, mas manteve a diferenciação nos cargos de nível superior. Essa postura atacou as carreiras de jornalistas e outros profissionais de comunicação, como produtores executivos, locutores especializados e videografistas. Cerca de 500 trabalhadores, quase um terço da força de trabalho da empresa, seriam impactados por essa diferenciação. Apenas depois do impacto da greve dos jornalistas, e do compromisso firmado pela Secom, foi possível fazer a direção da empresa recuar e garantir a isonomia reivindicada na proposta.
Arcabouço
O plano de fundo de toda essa disputa tem nome e sobrenome: Arcabouço Fiscal. Com a esperança de reconstrução da EBC, os trabalhadores percebem que a aprovação do PCR seria um ponto fundamental na valorização dos empregados em sua missão de levar à frente o projeto de comunicação pública. O problema é que, sendo uma empresa dependente, a EBC sofre diretamente com o contingenciamento promovido pelo governo federal. Em um momento de reconstrução, após anos de precarização e desmonte, a política econômica promovida pelo atual governo enfraquece a comunicação pública do país, em um momento fundamental para o combate à desinformação e ao avanço da extrema-direita. Além de um novo plano de carreira que valorize seus trabalhadores, os sindicatos demandam o fortalecimento da empresa e a realização de um novo concurso público, que possa ampliar a capacidade da empresa de cumprir sua missão frente aos desafios do país.