No último dia 23 de outubro, a Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), que é uma das maiores e mais importantes unidades de ensino da Universidade de São Paulo (USP), decidiu romper o convênio acadêmico que mantinha com a Universidade de Haifa, conhecida instituição israelense, em razão do genocídio que Israel vem perpetrando em Gaza desde outubro de 2023.
A histórica decisão da Congregação da FFLCH foi tomada por 46 votos favoráveis, havendo quatro votos contrários e quatro abstenções. É a primeira vez que um convênio desse tipo é rompido na USP. Outras universidades brasileiras que romperam convênios com homólogas israelenses foram a Universidade de Campinas (Unicamp), que em 26 de setembro último, por decisão do reitor, extinguiu sua relação com o Israel Institute of Technology, conhecido como Technion; a Universidade Federal do Ceará (UFC); e a Universidade Federal Fluminense (UFF).
O agora encerrado convênio da FFLCH com a Universidade de Haifa foi assinado pelo então diretor da faculdade, Paulo Martins, em 15 de dezembro de 2021 e tinha validade por cinco anos, até 14 de dezembro de 2026. Seu objeto era “a cooperação acadêmica nas áreas de História, Geografia, Filosofia, Ciências Sociais e Letras, a fim de promover o intercâmbio de docentes/pesquisadores, estudantes de pós-graduação, estudantes de graduação (com reconhecimento mútuo de estudos de graduação) e membros da equipe técnico-administrativa de ambas as instituições”, e não implicava contrapartida financeira por parte das duas instituições.
Em texto publicado no seu site nesta segunda-feira, 27 de outubro, a FFLCH informa que o pedido da inclusão da proposta de encerramento do acordo com a Universidade de Haifa foi encaminhado pelo Centro de Estudos Palestinos da FFLCH (CEPal), por meio de documento assinado por 53 docentes da unidade. A solicitação “abordou o Artigo 8º, inciso VIII do Regimento da Faculdade”, segundo o qual cabe exclusivamente à Congregação opinar sobre a realização de acordos e convênios que envolvam a política de pesquisa e ensino daquela unidade.
“A escalada genocida, sem precedentes e cada vez mais destrutiva do Estado de Israel sobre a população de Gaza, seu território e suas instituições — hospitais, escolas, universidades, templos, sítios históricos e arqueológicos —, faz com que um convênio da FFLCH com a Universidade de Haifa fira todos os princípios e valores da nossa Faculdade”, diz a justificativa apresentada pelo CePal.
Ainda segundo o documento, a Universidade de Haifa colabora ostensivamente com atividades militares do Estado de Israel: “Desde junho de 2018, essa universidade foi escolhida para conceder diplomas acadêmicos aos participantes [de instituições de ensino] das chamadas Forças de Defesa de Israel (IDF): Faculdade de Defesa Nacional de Israel (INDF); Escola de Guerra da IDF; Escola de Comando Tático”.
A Congregação da FFLCH também recebeu uma nota assinada pelos cinco centros acadêmicos da Faculdade (CeUPES, CAF, CEGE, CAEL e CAHIS) e pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE-Livre “Alexandre Vannucchi Leme”), e endossada “por todos os representantes discentes da Congregação e de colegiados de conselhos departamentais”, solicitando o fim das relações com Haifa.
No decorrer do debate, diferentes docentes, discentes e uma funcionária, integrantes da Congregação, defenderam a ruptura do convênio com a Universidade de Haifa, enquanto algumas pessoas se manifestaram pela continuidade. A professora Arlene Clemesha lembrou que, não bastasse o genocídio, Israel bombardeou e destruiu todas as universidades palestinas existentes na Faixa de Gaza. O diretor da FFLCH, professor Adrián Fanjul, que se encontra na China, por meio de uma chamada telefônica durante a reunião expôs diversos argumentos favoráveis ao encerramento do convênio (assista aqui à gravação em vídeo da reunião).
“Essa vitória foi resultado da luta do movimento estudantil, que através de panfletagens, atos e paralisações conseguiu pressionar pelo rompimento”, comemorou o DCE-Livre no seu perfil no Instagram, acrescentando que a Universidade de Haifa “financia o genocídio e persegue estudantes palestinos”.
Em 2004, deputado estadual questionou cooperação entre USP e Ariel
A USP ainda mantém dois instrumentos de cooperação com a Universidade de Ariel, ambos firmados em 22 de julho de 2021, com vigência até 21 de julho de 2026. Essa instituição de ensino superior foi erguida no assentamento ilegal de Ariel, na Cisjordânia ocupada, e por essa razão o “convênio acadêmico para mobilidade internacional”, de número Mercúrio 46.947, foi objeto do requerimento de informações (RI) 359/2024, apresentado pelo então deputado estadual Simão Pedro (PT) e encaminhado pela Assembleia Legislativa (Alesp). No site da Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional (Aucani), porém, esse instrumento, que corresponde ao processo 2021.1.10432.1.1, é citado como um “acordo de cooperação”.
O documento em questão foi assinado pelo então reitor Vahan Agopyan (atual secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação) e por sua contraparte israelense, Albert Pinhasov. Ao justificar a apresentação do requerimento de informações, o parlamentar menciona que o direito internacional, “por força das resoluções e deliberações das Nações Unidas [ONU], incluindo, mais recentemente a Resolução 77/247 de dezembro de 2022”, não reconhece a legalidade da ocupação de tal território pelo Estado de Israel, posição que é seguida pela República Federativa do Brasil.
“O assentamento de Ariel, sede da ‘Universidade de Ariel’, faz parte de um grande bloco de assentamentos ilegais, que ocupa terras de três províncias palestinas — Salfit, Qalqilya e Ramallah — e impacta diretamente a vida de 34 mil palestinos, em 10 vilas ao seu redor. Em 2021, ano em que o acordo com a USP foi firmado, somente nesse bloco que já se apossou de 26,5 km² de terras palestinas, moravam 32 mil colonos ilegais”, diz Simão Pedro no seu RI, protocolado em 22 de outubro de 2024.
“De acordo com um relatório da ONG israelense B’Tselem, os assentamentos dessa região foram estabelecidos em uma das áreas mais populosas e férteis da Cisjordânia, das quais os moradores palestinos da região dependiam exclusivamente para seu sustento. Essa é também uma das regiões com o maior confisco de terras palestinas”, acrescenta. (Confira aqui outras repercussões da criação da Universidade de Ariel em 2011 e 2012.)
Diz ainda Simão Pedro, na justificativa: “Ao manter vigente um contrato firmado com instituição ilegal segundo direito nacional e internacional, a USP incorre em violação dos princípios da legalidade e da moralidade, além de controntar uma política diplomática do Estado brasileiro”. Ele cita, a propósito, o decreto estadual 59.215/2013, que disciplina a celebração de convênios no âmbito da administração centralizada e autárquica e segundo o qual, no artigo 6º, a “celebração de convênio com Estado estrangeiro ou organização internacional deverá ser precedida de consulta à União, por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, pautando-se o Estado de São Paulo nos estritos termos do que lhe vier a ser estabelecido por esse ente, no uso da competência a que alude o artigo 21, inciso I, da Constituição da República”.
A seu ver, o convênio celebrado entre a USP e a Universidade de Ariel padece de “grave falta de transparência”, sendo inviável a obtenção de maiores informações sobre seus termos a partir de fontes abertas. “Em um contexto no qual o Estado de Israel encontra-se no banco dos réus da mais alta Corte das Nações Unidas [CIJ] pela prática de genocídio e, simultaneamente, as mais altas autoridades do país têm pedidos de prisão formulados pelo Promotor do Tribunal Penal Internacional, a manutenção do convênio entre uma universidade pública brasileira e uma universidade situada em território ilegalmente anexado por meio da violência mostra-se uma grave violação dos princípios constitucionais da legalidade e da moralidade”.
O então deputado encaminhou ao ex-reitor Agopyan diversas perguntas sobre o teor do convênio, entre as quais o valor total empenhado pela USP e instituições correlatas no custeio de bolsas, participação em conferências, aquisição de materiais etc.; número de estudantes envolvidos no programa de intercâmbio; mobilização financeira da USP e de instituições de fomento à pesquisa. Solicitou, ainda, “cópia integral da manifestação do Ministério das Relações Exteriores quando da realização de consulta sobre o convênio nos termos do artigo 6º do decreto estadual 59.215/2013”.
Agopyan só respondeu ao requerimento do deputado petista em 11 de abril de 2025, embora a USP tenha prestado a um subordinado seu na pasta estadual de Ciência, Tecnologia e Inovação, já no dia 18 de fevereiro (portanto, quase dois meses antes), as informações que o ex-reitor solicitara à universidade. Na verdade, ele se limitou a repassar à Alesp documento assinado pelo presidente da Aucani, Sérgio Persival Baronicini Proença.
Segundo Proença, o convênio com a Universidade Ariel não acarreta qualquer custo significativo, uma vez que as eventuais despesas com transporte e estada de docentes e estudantes teriam de ser custeadas pelos próprios interessados, e que “até o momento não houve qualquer registro de atividade de intercâmbiorealizada no âmbito do referido Acordo”, nem “registro de qualquer outra forma de cooperação acadêmica prevista no Acordo”. Além disso, ele considera que, em razão da autonomia das universidades públicas, o decreto estadual 59.215/2013, citado por Simão Pedro no RI, “não se aplica às universidades paulistas e, tampouco, a esta parceria estabelecida”.
Simão Pedro perdeu sua vaga na Alesp para o PSB, em julho deste ano, depois que o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) promoveu uma retotalização dos votos da eleição de 2022, em razão de fraudes cometidas pelo PTB e pelo PROS. As questões que ele levantou em 2024 a propósito do convênio entre a USP e a Universidade de Ariel continuam extremamente relevantes, porque desde então o Estado de Israel vem expandindo a limpeza étnica na Cisjordânia e o roubo explícito de terras palestinas, conforme apontado por importantes mídias estrangeiras, como o jornal israelense Haaretz e o britânico The Guardian em recentes reportagens.
No dia 25 de outubro, o Haaretz publicou ampla e impressionante reportagem intitulada “Linchamento, incêndio criminoso e massacre de rebanhos: Cisjordânia enfrenta violência israelense sem precedentes”, cujo autor escapou por pouco de ser assassinado por colonos israelenses: “Milícias de colonos israelenses, apoiadas por soldados, estão devastando comunidades palestinas – espancando moradores, incendiando plantações, destruindo carros e matando animais. Jonathan Pollak, que acompanha agricultores palestinos durante a colheita da azeitona, relata o que testemunhou — e como quase pagou por isso com a vida”, diz o texto de abertura.
O outro instrumento mantido pela USP com a Universidade de Ariel é o convênio de número Mercúrio 46.948, correspondente ao processo 2021.1.10433.1.8, e cuja descrição pela Aucani é semelhante: “Cooperação acadêmica; intercâmbio de docentes/pesquisadores, estudantes de pós-graduação, estudantes de graduação (com reconhecimento mútuo de estudos de graduação) e membros da equipe técnico-administrativa”.
USP mantém “Israel Corner” na Cidade Universitária do Butantã
Finalmente, há um convênio mantido diretamente pela Reitoria da USP com o Consulado Geral de Israel em São Paulo. Seu objeto é a “criação de um espaço interativo intercultural modal”, o chamado “Israel Corner” mantido pela Aucani no Centro Intercultural Internacional (CII), na Cidade Universitária do Butantã, e sua vigência encerra-se em 14 de dezembro de 2026.
Além de manter esse espaço que homenageia um Estado genocida e colonial, que descumpre sistematicamente as resoluções da ONU e da CIJ, a Reitoria nunca se preocupou em criar um “corner” semelhante dedicado à Palestina, apesar de sugestões nesse sentido.
Em abril, a Aucani teve de recuar na realização de uma “Feira Internacional Cultural 2025”, que serviria de palco para apresentações do Consulado Geral de Israel, depois que o professor aposentado da FFLCH e ex-ministro de Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro denunciou o fato por meio de um artigo que repercutiu intensamente.


