O repórter-fotográfico Ennio Brauns, largamente estimado dentro e fora da nossa categoria, faleceu no último sábado, 24 de junho, aos 69 anos de idade, vítima de sucessivos ataques cardíacos. Como profissional, Ennio Frederico Brauns Filho notabilizou-se por registrar a história de diferentes movimentos sociais e sindicais, a partir de um ponto de vista engajado e protagonista. Documentou, igualmente, a longa trajetória do Teatro Oficina.
Durante a Ditadura Militar, Ennio atuou no jornal alternativo Em Tempo. Na mídia tradicional, a partir dos anos 1980, trabalhou como freelancer no Diário Popular e na Folha de S. Paulo. Nos últimos tempos, vinha colaborando com a Fundação Perseu Abramo (FPA), do Partido dos Trabalhadores, para a qual organizou duas importantes publicações, os livros Máquinas Paradas, Fotógrafos em Ação (2017), com Adilson Ruiz, e Movimento Negro Unificado – a resistência nas ruas (2020), com Gevanilda Gomes dos Santos e José Adão de Oliveira.
“Além destes livros, Ennio colaborou com outras publicações da FPA. Parte de seu acervo fotográfico está disponível no Centro Sérgio Buarque de Holanda (CSBH). Obrigado, camarada Ennio, pela companhia e dedicação aos registros fotográficos de tantos momentos históricos das lutas populares”, escreveu Rogério Chaves, editor do setor de publicações da fundação e um de seus inúmeros amigos, em texto que circulou nas redes sociais.
Ele também dirigiu, ao lado de Jonathan Constantino, o documentário Que Povo é Esse?, sobre a temática da moradia popular, elaborado a partir de depoimentos de participantes das ocupações organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e por outros grupos em São Bernardo do Campo e São Paulo.
“Ennio participou da ‘Confraria dos Poetas Vermelhos’, coletivo de poetas, fotógrafos, artistas plásticos e cineastas organizado por Alípio Freire e que ocorria no ‘Ateliê XXII’. Nessa época surgiu a proposta de produzirmos um documentário sobre a experiência do acampamento ‘Povo sem medo’ que ocorria em São Bernardo do Campo, num terreno que ficava de frente para a fábrica da Scania, palco do primeiro foco de greve dos metalúrgicos, em 1978”, relata Jonathan.
“As gravações se iniciaram em dezembro de 2017, a ideia amadureceu e o projeto se tornou uma série documental em cinco episódios que aborda a questão da moradia de forma mais ampla. Que povo é esse?, cuja direção foi do Ennio, foi finalizada em 2023 e exibida pela TVT em março deste ano”. Além disso, Ennio participou desde o início da construção do Instituto Estação Paraíso, fundado para dar sequência às ideias e produções de Alípio Freire.
“Contribuiu com a separação e organização de documentos, com as discussões políticas e organizativas, com a realização do site do Instituto, com o registro fotográfico de eventos que realizamos, sempre disposto a ajudar naquilo que fosse necessário”, explicou Jonathan. “Semana passada ele me mostrou uma nova ideia dele: um documentário em curta-metragem avaliando Junho de 2013. Já tinha começado a fazê-lo, mas não havia concluído ainda”.
Foco nos movimentos sociais
Outro amigo pessoal de Ennio, o repórter-fotográfico Jesus Carlos foi um de seus mais importantes parceiros de trabalho. “Conheci o Ennio em 1978, no jornal Em Tempo. Ele tinha acabado de chegar do Rio de Janeiro. Como o Em Tempo era voltado para a luta contra a Ditadura, portanto suas matérias eram relacionadas principalmente à luta dos trabalhadores e do povo em geral, a maioria das pautas que cobríamos eram ligadas ao movimento social”, conta.
“Uma vez o Ennio chegou a comentar que a sua lente sempre foi e sempre iria ser voltada para os movimentos sociais. E foi justamente nesse ambiente que ele aprendeu a trabalhar, a saber o que era uma fotografia, que lente usar e quando usar, porque foi nas greves, nas grandes assembleias, nas manifestações de rua que ele entendeu o que era a fotografia e a importância dela”, descreve Jesus Carlos.
Os anos se passaram e Ennio continuou focado nos movimentos sociais. “Dos anos 90 para cá, ele começou a trabalhar a sua fotografia voltada para os movimentos de minorias, tendo como foco principal a questão de gênero. Foi ali que ele começou a fotografar as Paradas LGBT. Acredito que seja um dos fotógrafos que tenham o maior arquivo voltado para a questão da homoafetividade”.
A partir de 2011 ou 2012, destaca Jesus Carlos, Ennio passou a se envolver com o que chamava de produção cultural. “Falava que publicar somente foto era uma coisa muito passageira, e a melhor forma de perpetuar a fotografia seria fazer publicações independentes, que poderiam ser um livro, uma revista ou um documentário. Foi nesse processo que o Ennio, conversando com o Adilson Ruiz, com um grupo de fotógrafos, inclusive comigo, e com a FPA, viu a possibilidade de se publicar um livro que fosse um registro das greves e dos movimentos do final dos anos 70 e início dos anos 80 no ABC”.
Começou aí, prossegue, um esforço de contatar os profissionais que haviam fotografado os metalúrgicos de São Bernardo do Campo e suas lutas por melhores condições de vida e trabalho, do qual surgiria a obra Máquinas Paradas, Fotógrafos em Ação. “Ennio conseguiu reunir dez fotógrafos, e ele e Adilson, a partir de um roteiro, montaram o livro que hoje é talvez o documento fotográfico mais importante do que foi o ABC durante as greves dos metalúrgicos”.
Em seguida Ennio, a Fundação Soweto e a FPA resolveram produzir um livro relacionado à questão do movimento negro. “Juntamos um grupo de pessoas, abrimos contato com fotógrafos que tinham imagens relacionadas, e surgiu o livro Movimento Negro Unificado – a resistência nas ruas. Uma bela publicação, que justamente aos 40 anos da fundação do MNU se torna uma referência iconográfica”, diz Jesus Carlos.
Depois, novamente com a participação de um grupo de amigos, Ennio dará forma a projetos audiovisuais, sendo o primeiro deles a série documental Que Povo é Esse?, que por questões econômicas e por causa da pandemia de Covid-19 demorou cinco anos para ficar pronto. Em seguida começou a trabalhar no documentário Junho de 2013, que deixaria inconcluso.
Por fim, Jesus Carlos assinala o papel de Ennio nos esforços organizativos do segmento dos repórteres-fotográficos. “Ajudou a fundar a União de Fotógrafos de São Paulo e a Associação de Repórteres Fotográficos e Cinematográficos no Estado de São Paulo (Arfoc). Foi grande a sua participação na criação e fundação dessas duas entidades”.
Teatro Oficina e fotojornalismo
Na sua página pessoal na Internet, onde expunha parte das imagens que captou, encontramos uma explicação surpreendente de Ennio para sua motivação profissional. “Uma boa parte da minha relação com o teatro passa pelo Oficina. Aliás foi fotografando teatro que entendi a necessidade do fotojornalismo”, revelou, no texto de apoio da seção dedicada à casa teatral de José Celso Martinez.
“Dos encontros esporádicos com o Oficina dos anos 80 saíram a documentação do espaço antigo sendo demolido e transformado, os ensaios e as apresentações de ‘Onde Estás?’ de Breno Moroni, as cirandas do Surubim, os circenses na rua de Verônica Tamaoki. Documentos de uma época de resistência cultural ampla e irrestrita”.
Outra faceta notável do seu trabalho, como bem apontado por Jesus Carlos, envolveu o registro da homoafetividade vivida no cotidiano e de eventos como a Marcha das Vadias e a Caminhada Lésbica e Bissexual. “Pessoas LGBTQI+ vêm transformando a paisagem, as consciências e os direitos fundamentais de todos nós, cada vez mais. Aqui, Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros manifestando seus afetos, direitos e orgulhos”, anotou ele.
Mas é no prefácio que escreveu em agosto de 2016 para Máquinas Paradas, Fotógrafos em Ação que Ennio resume o que pensava de seu fazer como jornalista: “De todas as ramificações mais excitantes dessa profissão, a que mais me toca mesmo é a História. E o que mais me interessa, em tudo é a história. A grande e a pequena. A coletiva e a individual. A que vivemos e a que ouvimos falar. Mas, principalmente, por força do hábito, a que vemos e a que mostramos, mesmo aos que não querem ver. A fotografia tem essa vantagem e fotógrafos jornalistas são aqueles que fazem de tudo para aproveitar essa oportunidade”.
Na continuação, explica a escolha do assunto do livro: “As mobilizações dos operários metalúrgicos nas décadas de 1970/80, na região metropolitana de São Paulo, têm seu momento mais importante nas greves de 78/79/80. São um marco na história das lutas populares no país e a expressão de uma experiência coletiva de trabalhadores que entusiasmou grande parte da sociedade civil nacional. Revelam a capacidade da solidariedade na luta contra o Estado autoritário, como poucas vezes se viu na nossa História”.
“Os registros fotográficos desses acontecimentos apresentam um olhar racional, jornalístico, e uma leitura emocional, fotográfica, e isso é fundamental para entender o que acontecia com o país naqueles anos. Uma experiência como essa, que empolgou centenas de milhares de trabalhadores em torno de causas justas, necessárias e urgentes, não podia ser de outro jeito, mesmo. Em todas as imagens encontradas na pesquisa, podemos constatar, principalmente, que a história de um povo está na cara, nos gestos, nas ações coletivas e individuais, que sofrem as derrotas e festejam as vitórias”.
A Diretoria do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo lamenta profundamente a morte do colega Ennio Brauns e se solidariza com sua esposa, Luzia Cardoso, e com os demais familiares e amigos. Camarada Ennio Brauns, presente!
Confira aqui a obra: Movimento Negro Unificado