Numa gama de adjetivos sem fim, a grandiosidade de Audálio Dantas se multiplicou nas rodas de conversa de todos e todas que ocuparam o Auditório Vladimir Herzog para se despedir, no velório na última quinta-feira (31), na sede do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP), no centro paulistano. Audálio morreu na tarde deste 30 de maio, no Hospital Premier, na capital paulista, aos 88 anos, vítima de câncer.
Autodidata em uma época em que não havia cursos de jornalismo no Brasil, foi repórter inquieto, sensível e desbravador, escritor premiado várias vezes, cidadão corajoso e coerente, deputado influente e combativo, militante engajado dos direitos humanos.
O jornalista sempre defendeu o que chamou de “despertar da consciência”. Com ela, no caso do assassinato de Herzog e do culto ecumênico que levou uma multidão à Praça da Sé, Audálio protagonizou no Sindicato dos Jornalistas de SP a mobilização que impulsionou a sociedade brasileira para reagir, em um movimento que, anos mais tarde, levou ao fim da ditadura e promoveu a redemocratização do país.
Audálio abriu as portas do Sindicato e no auditório da entidade foi organizado o culto ecumênico da missa de sétimo dia pela morte de Herzog. O ato público, com mais de oito mil pessoas reunidas na Catedral da Sé, centro paulistano, em 31 de outubro de 1975.Foto: Agência O Globo/Acervo SJSP
Os muitos relatos sobre o jornalista também não deixam dúvidas sobre o seu engajamento na luta e a generosidade solidária com outras categorias e causas. O padre Júlio Lancellotti lembrou que Audálio foi uma das vozes que se levantou e conclamou a população a manifestar repúdio ao assassinato de Ricardo Silva Nascimento, negro, catador de recicláveis, executado aos 39 anos pelo policial militar José Marques Medalhano, em 12 de julho de 2017, na Rua Mourato Coelho, em Pinheiros, na zona oeste paulistana.
Citando o Papa Francisco, o padre disse que os jornalistas devem ser “uma voz indomável” e criticou as notícias falsas, as conhecidas fake news. “O Audálio é símbolo do mundo verdadeiro, da notícia, da verdade e de aplicar não uma palavra que caiu em desuso, a ‘imparcialidade’, mas colocar humanidade, verdade, a partir de um ponto. Como diz Leonardo Boff ‘todo ponto de vista é a vista a partir de um ponto’. Audálio sempre teve um ponto e nunca retrocedeu”, afirmou Lancellotti.
Doçura sempre com coragem e lucidez
Além da capacidade de mobilizar consciências, Dantas ainda tem entre suas marcas o dom “de fazer acontecer” e um certo toque de Midas dentro e fora do jornalismo.
O próprio Audálio afirmava que o fato mais importante de sua carreira foi revelar a escritora negra Carolina Maria de Jesus, moradora da favela paulistana do Canindé e catadora de lixo. Com uma pauta direcionada para a cobertura de um parque infantil, o jornalista passou a acompanhar o dia a dia da favela para uma reportagem da Folha da Noite, em 1958, quando descobriu os diários de Carolina. Dois anos mais tarde, graças ao apoio do jornalista, ela publicou “Quarto de despejo”, traduzido para mais de dez idiomas. O título também foi sugestão por Dantas a partir da afirmação da escritora de que “a favela é o quarto de despejo da cidade”.
Segundo o jornalista e escritor Fernando Morais, a singularidade de Dantas estava em ser doce e corajoso ao mesmo tempo. “No dia em que alguém for escrever a história da ditadura militar, o nome de Audálio Dantas tem que aparecer em letras maiúsculas, porque foi aqui no auditório Vladimir Herzog que a ditadura começou a acabar. E foi graças à informação que ele deu à minha família que acabei escapando do Doi-Codi. Escapei sem saber o que estava acontecendo e os caras que foram me procurar em casa na sexta-feira à noite, mataram o Vlado na manhã de sábado”, relembrou.
Com 52 anos de carreira como artista gráfico e jornalista, Elifas Andreato afirmou que “as coisa eram difíceis no início, aliás, sempre foi difícil para nós artistas, mas o Audálio mostrava meus trabalhos e me incentivou desde o começo da minha carreira”, afirmou o autor do quadro que retrata o assassinato de Herzog e é, há anos, a marca registrada do auditório do Sindicato.
Apresentador da Rádio Brasil Atual, Colibri Vitta contou com o sinal verde na gestão de Dantas, de 1975 a 1978, para a realização de eventos culturais na sede do SJSP, incluindo apresentações musicais e audiovisuais que lotavam a entidade e deram início ao Cineclube Vladimir Herzog, entre outras atividades. “Nós exibimos filmes que não passavam em nenhum outro cinema de São Paulo na época da ditadura, e as pessoas vinham assistir e debater porque o Sindicato era uma trincheira de resistência contra o regime militar. Havia uma efervescência e o Audálio dava respaldo, nos dava liberdade para fazermos isso”, pontuou.
Para a cartunista Laerte Coutinho, Audálio Dantas deixa esse exemplo de coragem e lucidez. “Porque às vezes não basta a pessoa ser corajosa, tem que ter lucidez para enveredar por um caminho e liderar as pessoas numa direção interessante, que diga respeito ao que todo mundo está buscando”, resumiu.
Papel fundamental nas greve do ABC
Dantas e os demais sindicalistas com a categoria em negociação com os patrões em 1977. Foto: Arquivo/SJSP
O que talvez nem todos saibam é que Audálio também teve papel essencial no histórico movimento operário do ABC. Em julho de 1977, economistas ouvidos numa reportagem da Gazeta Mercantil confirmam que, em 1973, o então ministro da Fazenda, Delfim Netto, havia falsificado os dados oficiais da inflação que eram base para o reajuste de salários. O custo de vida real seria, na época, de 24% em média, e não os 14% divulgados oficialmente pelo governo militar.
Sob a batuta de Audálio, o Sindicato foi apurar as informações com o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) e o SJSP se tornou o primeiro Sindicato do país a reivindicar a reposição das perdas reais e que atingiam cerca de 10 mil jornalistas no estado de São Paulo, abrindo espaço para o mesmo embate por outras categorias.
Quando começaram as greves dos metalúrgicos do ABC, no final da década de 1970, Audálio era deputado federal e, entre outras ações, seu mandato combatia a repressão policial na porta das fábricas.
Diretor do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC na época, o ex-deputado federal petista Djalma Bom se emocionou. “A presença constante do companheiro Audálio na greves, principalmente de 1978 a 1980, era que nos dava força para lutar contra o arrocho salarial e a ditadura militar. Minha presença [aqui] é de agradecimento por tudo que ele que fez não só para os metalúrgicos, mas para os trabalhadores do Brasil inteiro”, disse emocionado o metalúrgico agora aposentado.
Audálio vive!
Comemoração do aniversário de Audálio na sede do Sindicato, em agosto de 2017, com o São Jorge como Troféu Indignação-Coragem-Esperança. Foto: Cadu Bazileviski/SJSP
Antes mesmo do caso emblemático de Vlado, Dantas e a direção do Sindicato já haviam se posicionado denunciando a repressão do regime civil-militar desde o desaparecimento do primeiro jornalista, Sérgio Gomes. As ações dos militares contra a categoria se aprofundaram a partir do final de julho de 1975, sob a justificativa de que havia uma “imprensa infiltrada pelos comunistas”.
No período entre a posse da nova diretoria, em maio de 1975, até o assassinato de Herzog, foram 12 jornalistas vítimas de prisões, torturas e desaparecimentos, e, com a coragem de Audálio, o Sindicato divulgou notas denunciando todos esses casos aos meios de comunicação.
Hoje diretor da Oboré Projetos Especiais, Sérgio Gomes se despede do amigo destacando que Audálio permanece entre nós. “Nunca vi o Audálio tão vivo quanto no seu próprio velório porque ele conseguiu atrair o que tem de mais qualificado e representativo que existe no mundo do jornalismo, da política e da cultura. Foram mais de 700 pessoas que viram o Audálio ‘vestindo’ a camiseta dizendo da necessidade da esperança, da coragem e da dignidade. Essas pessoas se inspiravam e inspiraram novamente nessas qualidades que o Audálio tinha”, conclui.
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