Em ato de protesto na noite de ontem (3), jornalistas, sociólogos, coletivos em prol da liberdade de expressão e ex-funcionários se reuniram para debater as causas do sucateamento da TV Cultura. O encontro decidiu pela ampliação do movimento em prol da TV pública do estado de São Paulo. O objetivo principal, segundo os participantes, tem de ser a reversão do quadro de sucateamento técnico e de conteúdo, agravado na atual gestão de João Sayad, para uma programação plural e diversificada, mantendo a essência de uma televisão sem fins comerciais. Diretores do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo estiveram presentes.
Mais de mil demissões em um curto período de tempo, extinção de programas, empobrecimento de material próprio e entrega da programação a meios de comunicação privados, como o jornal Folha de S. Paulo e a revista Veja, são alguns dos vários efeitos do processo de desmonte da TV Cultura e das emissoras públicas de rádio, num processo iniciado há alguns anos.
Apesar de a atual crise ameaçar o patrimônio paulista, não é a primeira vez que a Cultura esteve prestes a ruir, como lembrou o sociólogo e professor da Universidade de São Paulo (USP) Laurindo Lalo Leal Filho. Um destes momentos aconteceu ao final do mandato do então governador Paulo Maluf, quando quase toda a diretoria foi destituída, fazendo com que sobressaísse a tendência privatizante e os interesses do governo vigente na programação da emissora.
“As crises são continuadas”, observou Lalo. No entanto, ele destacou o poder da produção própria da programação infantil que já levaram a Cultura a registrar inéditos dois dígitos de audiência ante os “enlatados” vindos do exterior, trazidas pelas emissoras comerciais. “Até o Silvio Santos começou a ficar preocupado por perder uns pontinhos para a Cultura”, disse.
Entretanto, Lalo – que é, em suas próprias palavras, “antigo ex-funcionário” da Fundação Padre Anchieta – alertou sobre a iminência de um cenário pior à vista. “Costumávamos dizer antes que a Cultura era a televisão mais lida, porque ainda que não desse muita audiência era muito retratada na mídia impressa. Hoje, se a coisa continuar neste pé, nem lida será, porque a mídia toda está sendo cooptada”, lamentou. A formação de jovens para o trabalho no serviço público de radiodifusão é, segundo ele, uma das questão que precisam ser debatidas para o fortalecimento da TV pública, o que ainda não acontecea com a intensidade que deveria.
Na opinião do jornalista Luis Nassif, a Fundação padre Anchieta, controladora da Cultura, passa por longos períodos sem processos de crítica interna, o que também, avalia, contribui para o desmonte da emissora. “A cada gestão é nítido o desmando, ocasionado ou por briga política ou por pessoas incapacitadas em postos-chave”, disse.
O jornalista, que apoia a organização de um movimento suprapartidário para barrar o desmonte da Cultura, enfatizou a “submissão” do ex-presidente da Padre Anchieta, Paulo Markun, ao governo do ex-governador José Serra (PSDB). Postura que teria, segundo ele, se repetido na relação entre o atual gestor, Sayad, e o governador Geraldo Alckmin (PSDB).
“O negócio com a Folha e a Abril é de uma total falta de cultura”, ironizou Nassif. O editor da revista Fórum e presidente da Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação (Altercom), Renato Rovai, reforçou: “Não é à toa que Folha e Veja têm milhares de assinaturas feitas pelo governo.”
Coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e secretária de Comunicação da CUT, Rosane Bertotti se disse “perplexa” em razão do estado de São Paulo estar na contramão de discussões de grande importância, como o marco regulatório das comunicações. “No momento em que é preciso ter um instrumento público que garanta liberdade de expressão para a população, o espaço se fecha. Precisamos debater neste momento o que queremos da comunicação pública deste país”, disse.
Líderes da Comissão de Educação e Cultura da Assembleia Legislativa de São Paulo presentes no ato confirmaram a realização de uma audiência pública para levar a discussão ao espaço parlamentar. Houve tentativa de instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em 2003 para discutir os recorrentes problemas da emissora, mas foi barrada e engavetada pela liderança do partido de situação.
O deputado Simão Pedro (PT), presidente da comissão e também membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta, lembrou que a política de desmonte da Cultura se assenta no orçamento concedido pelo governo. “Enquanto o governo direciona cada vez menos recursos, o orçamento vindo do setor privado cresce, o que cria o déficit que se tem hoje”, disse. Resultado disso, segundo o deputado, é que a “corda arrebenta para o lado mais fraco”, ou seja, os trabalhadores, que estão sendo demitidos.
Uma das que perderam seu emprego é Maria Amélia Rocha Lopes, ex-diretora do programa “Manos e Minas”, voltado ao público jovem das periferias. Enquanto ela estava à frente da atração, a presidência da emissora decidiu que o programa seria “descontinuado” por não mais corresponder ao “perfil desejado”. Após campanhas com forte adesão nas redes sociais pelo retorno do programa, Sayad voltou atrás na decisão.
“Eles não contavam que a população de São Paulo tinha interesse em ver este tipo de programa, que mostrava o caldeirão cultural da periferia. Nós tínhamos convicção de que fazíamos algo de relevância”, disse Maria Amélia. Embora o “Manos e Minas” continue na grade da programação, os funcionários que se posicionaram pela volta do programa foram demitidos. “Meu testemunho é para estimular que as pessoas se disponham a fazer acontecer. Todo mundo reclama de o governo ser assim ou ser assado, mas depois que mostramos o que queríamos, tiveram que engolir a gente.”
Texto: Letícia Cruz, Rede Brasil Atual