O relato a seguir é de um funcionário desesperado da Editora Três, empresa responsável pelas publicações de IstoÉ, IstoÉ Dinheiro, Dinheiro Rural, Motor Show, entre outras. O jornalista que faz aqui um desabafo trabalha numa das redações formadas só de PJs [pessoas jurídicas]. Para burlar leis trabalhistas, pagar menos impostos e demitir com mais facilidade, alguns empresários, ao invés de assinar a carteira, optam por empregar funcionários como se estivessem firmando um contrato com outra empresa. É uma fraude jurídico-trabalhista em que um brasileiro é contratado como uma companhia, mas trabalha como empregado. Essa manobra ainda está muito presente em vários veículos de comunicação na internet, no rádio, TV, jornais e revistas. O caso da Editora Três é por demais emblemático por mostrar, de maneira clara, como a “pejotização”, que retira quaisquer direitos trabalhistas, pode precarizar a profissão a tal ponto de não só destruir as condições para se fazer jornalismo, mas as próprias vidas dos empregados. No relato abaixo, você vai ver que não há exagero nisso.
“Os salários estão atrasados há quatro meses na Editora Três. As pessoas que estão saindo não recebem nada, principalmente por terem sido contratadas como PJ. Não depositam o FGTS há anos. A novidade agora é que a revista só sai porque está sendo feita por jornalistas PJs já aposentados, que aceitaram as vagas e estão lá fazendo bico. Hoje só existem três pessoas ‘celetistas’ [com carteira assinada, vínculo empregatício regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)] na redação.”
“Não tenho plano de saúde – para quem tem uma doença crônica, é foda. Cortaram meu telefone, estou para ser despejado e, como muitos na redação, vou à empresa de segunda a sexta para comer no refeitório. Tá foda! Não sei mais o que fazer… Tem um colega que está escondido da polícia para não ser preso por atrasos na pensão. Nem na redação ele pode ir. A polícia tem ido lá direto para pegá-lo. Quem tem, está vendendo a própria casa para pagar dívidas.”
“Não estou exagerando. Tem gente pensando em suicídio. Outros em agredir o dono. Tem B.O. na polícia de jornalista que ameaça matar o editor-chefe e sequestrar os filhos do cara. Este é meu grito de socorro.”
O caso acima não é isolado. Em tempos de grave crise econômica, o “pejotismo” é usado para tirar direitos e baratear o trabalho. Um estudo do DIEESE, com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2017 (PNAD/ IBGE), mostra que apenas 44% dos jornalistas do Brasil são empregados com carteira assinada (50.650 profissionais em um universo de 114.409). Os outros 56% são contratados como PJs ou autônomos ou têm outras posições ocupacionais. No estado de São Paulo, só 37% dos profissionais são registrados (12.207 em um universo de 33.191 profissionais).
Processos trabalhistas
O Unidade obteve processos de jornalistas que lutaram ou estão lutando na Justiça contra a “pejotização”. Entre esses, um caso da Editora Três e outro do jornalista Hermano Henning contra o SBT, importante pela notoriedade e ousadia ao envolver um jornalista que sozinho resolveu processar a emissora do megaempresário Sílvio Santos. Muitos colegas temem, com razão, brigar na Justiça contra o patrão, receiam não arrumar mais trabalho num mercado encolhido pela crise e mudanças tecnológicas, sempre concentrado nas mãos de poucas famílias. O medo de retaliação é tanto que poucos profissionais
aceitam aparecer numa reportagem como esta sobre “pejotismo”.
Os PJs são os primeiros a serem demitidos. O coordenador do departamento jurídico do SJSP, Raphael Maia, explica: “O ‘PJ’ não tem proteção nenhuma. No máximo, o empregador coloca um salário de indenização ou multa irrisória em contrato. A ‘pejotização’ é a precarização da profissão depois de décadas de luta.”
O presidente do SJSP, Paulo Zocchi, destaca: “A reforma trabalhista e a lei que permitiu a terceirização até da atividade-fim não legalizaram o ‘pejotismo’, que continua considerado uma fraude pela Justiça, que continua sendo ilegal. Prova disso é que a Globo tem ‘celetizado’ os seus PJs, certamente pela insegurança jurídica e o fato de ter perdido ações judiciais.”
O caso da Editora Três
O repórter de política e economia Leonardo Fuhrman, 43 anos, 23 como jornalista, trabalhou um ano e três meses na revista Dinheiro Rural, da Editora Três, entre 2016 e 2017. Quando chegou lá disseram-lhe “que iriam iniciar um processo de ‘celetização’, o que nunca aconteceu”. Mas foi ficando, mesmo com o salário atrasado. “As pessoas ficam meio amarradas no sistema, elas precisam trabalhar, precisam receber…”
PJ, Fuhrman entrou em contato com o departamento jurídico do SJSP e ajuizou uma ação contra a empresa logo depois que saiu para provar que tinha vínculo empregatício. “Eles chegaram a propor um acordo mas não cumpriram, não pagaram. Foi até antes de eu entrar com o processo. Fizeram uma conta e colocaram 13º, férias, colocaram tudo mas não pagaram.”
Quando Fuhrman ingressou na empresa a roda já girava fazia tempo. A Editora Três iniciou o processo de “pejotização” há mais ou menos uma década, com a promessa de que os jornalistas receberiam um aumento de 30% nos salários e teriam mantidos o 13º, férias e eventuais conquistas e reajustes da convenção coletiva.
Até cinco anos atrás, a empresa possuía pouco mais de dez revistas impressas (IstoÉ, IstoÉ Dinheiro, Dinheiro Rural, Platinum, Planeta, Motor Show, Menu, Status, Select, Women’s Health, Bicycling, Runner’s World). As redações somavam em torno de 150 jornalistas. Mas isso mudou. O número de revistas caiu para cerca de cinco. Poucas em papel. Sem necessidade formal de respeitar os direitos trabalhistas contidos na CLT e qualquer barreira contra o desemprego, a editora passou a demitir os PJs e a forçar os poucos “celetistas” que restavam a mudar de contrato. Não se viu obrigada a pagar saldo de salário; aviso prévio; aviso prévio especial para empregados com mais de um ano de trabalho; férias vencidas e proporcionais; 13º; e multa de 40% do FGTS.
O número de jornalistas caiu para menos de um terço do que era. As revistas não têm mais fotógrafos nem revisores. Em toda a empresa só existem três jornalistas com carteira assinada. A redação, formada em parte por jornalistas aposentados, que não exigem registro em carteira e aceitam ganhar menos, convive com salários atrasados; sem 13º; e sem férias remuneradas.
Recentemente, o Ministério Público do Trabalho moveu uma ação com a participação do SJSP, para obrigar a empresa a acertar o pagamento dos salários e a depositar o FGTS dos funcionários, sob pena de pagamento de multa ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) de R$ 10 mil acrescidos de R$ 1.000 por trabalhador prejudicado. A empresa recorreu.
A precarização chegou ao ponto de editores e repórteres passarem a receber por revista fechada. Se em um ano fossem dez edições, recebiam, quando recebiam, por essas dez apenas. A Três fez isso com a Motor Show, Planeta e Menu. Além disso, obrigou os profissionais a trabalharem em home office.
No ano passado, Fuhrmann ganhou a ação em 1ª instância, e a editora recorreu. Ele conseguiu comprovar frente à Justiça três fatores básicos que caracterizam uma relação de empregador e empregado: a habitualidade, ou seja, o controle pelo patrão sobre o horário regular e habitual do trabalhador; a pessoalidade, quer dizer, o funcionário não pode mandar outra pessoa no lugar para fazer o serviço quando lhe convir; e a subordinação a um chefe, diretor, ou patrão. Em sua decisão, a juíza do Trabalho Ana Carla Santana Tavares foi taxativa: “As cópias da revista [Dinheiro Rural] […] apontam o nome do reclamante [Leonardo Fuhrmann] na página de editorial como um dos responsáveis pelo texto. Assim, resta evidente que o trabalho do autor era pessoal e também habitual.” Em outro trecho, a magistrada afirma: “As notas fiscais […] evidenciam a onerosidade e corroboram que não se tratava de serviço eventual.” E mais: “Os e-mails trazem indícios de que o reclamante não possuía autonomia na escolha das matérias e do conteúdo.” E finaliza: “Portanto, julgo procedente o pedido de reconhecimento de vínculo empregatício.”
Greve de PJs
Fuhrmann ainda pegou as paralisações, greves de PJs. Algo inusitado ou até um termo errado de se usar, afinal pessoa jurídica, empresa de verdade, não faz greve, faz locaute. Mas não estamos falando de empresas de fato, mas de uma fraude, não é mesmo?
Ele conta um episódio traumático pela violenta reação dos empregadores. Em 2017, repórteres e editores-assistentes das revistas IstoÉ Dinheiro e Dinheiro Rural decidiram dar um aviso à direção. Saíram para o almoço e, ao invés de voltarem, cruzaram os braços por uma hora. À época, os atrasos nos vencimentos já eram de dois meses. Para piorar, a empresa anunciou que os PJs não receberiam mais os reajustes acordados nas convenções coletivas, nem o 13º. Somado a isso, o diretor do SJSP Alan Rodrigues, com então 23 anos de casa, foi demitido como retaliação, mesmo protegido com imunidade
sindical. Ele seria reintegrado após muita briga na Justiça.
Assim como Fuhrmann, o que o ex-editor Carlos Dias, da IstoÉ Dinheiro, único editor a participar da paralisação, não esquece é o que veio depois. “Não me arrependo. Tinha gente sem dinheiro para comer. Mas, essas pessoas que desceram, inclusive eu, foram pinçadas a dedo para conversar com Carlos [José Marques, diretor editorial da Editora Três]… e foram defenestradas. Foi uma reunião muito agressiva.” Fuhrmann concorda. “Foi uma reunião supertensa, com ele [Carlos Marques] ameaçando as pessoas. Tem uma gravação do diálogo. Marques xingou e mandou embora um colega meu na hora. É uma aula sobre direitos dos ‘PJs’ em linguagem de gangster.”
Carlos José Marques abriu a reunião assim: “Vocês sabem que toda e qualquer ação provoca uma reação e não são das melhores… Todos nós aqui somos prestadores de serviço, que pese (inaudível) não ser CLT. Por conta disso, não cabe (sic) greves, paralisações e atos. Não será mais permitido este tipo de episódio que aconteceu aqui. Volte a fazer (inaudível) será sumariamente desligado ou terá seu contrato suspenso… Com relação aos cortes, as perdas… do 13°… salário, das férias etc… foi devidamente esclarecido a todos os profissionais que não ia ter mais diante do novo regime de trabalho que a empresa
achou por necessidade adotar, e as pessoas que não estiverem satisfeitas… vai embora. Pode sair e depois ir à Justiça… Isso [paralisação] não se faz. Me desculpe a expressão: é molecagem!”
Nesse momento, um repórter, cuja identidade vamos manter em segredo para não haver mais retaliações, se manifesta. Vamos chamá-lo aqui de Roberto.
Roberto: Desculpe, ficar sem receber salário pode?
Marques: Campeão, eu vou dizer uma coisa…
R: Desculpa, campeão não, Roberto.
M: Roberto, eu vou dizer uma coisa, seu Roberto, se você quiser ir embora, já disse, pra rua! Tchau! Quer ir agora, né? Quer ir agora, fora! tchau! Eu já lhe disse claramente o seguinte: aqui não há ambiente para sindicalismo. E não vai haver, cê tá entendendo, seu Roberto?
R: Fale com mais respeito.
M: Então você também tenha respeito pela empresa. […] Dane-se você e vai embora quem quiser! É só isso. Cê quer ir pra Justiça, vá. Cê quer sair, saia já! Palhaço!
Então, outro jornalista, que não está identificado na gravação, se manifesta: “Olha, como você disse, quem quer sair, sai, mas nós não temos essa opção porque quem tá saindo não tá recebendo.”
No SBT também acontece
Pelo salário que recebia, muito maior do que a média da categoria, e o alto cargo que ocupava no SBT, Hermano Henning não serve de regra na profissão, mas sua contratação como PJ também traz à luz a fraude do “pejotismo”, comum no jornalismo desde os anos 1990. Henning ousou ajuizar uma ação contra o SBT após 23 anos trabalhando sem registro.
O âncora quer reconhecimento de vínculo trabalhista, que é a carteira assinada como empregado, além de tudo o que isso lhe garante pela CLT, que são férias, 13º, depósito de FGTS, multa de 40% em razão da dispensa, indenização por ter tido o salário reduzido e equiparação salarial.
No ano passado, lembrou da demissão em entrevista ao UOL: “Imagina, tanto tempo de dedicação e o cara chegar no telefone e dizer: ‘O seu programa saiu do ar, não precisamos mais de você’. Me senti muito humilhado.”
Mas dessa vez, com medo de retaliação e com o processo em fase final, em vias de ser julgado pelo Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília, Henning achou melhor se calar. Óbvio, ele pode ganhar ou perder. O jornalista, que recebia um salário de mais de R$ 100.000 por mês, pode receber mais de R$ 14 milhões se conseguir uma decisão favorável.
Além do mérito do caso, a corte analisa recurso dos advogados do SBT contra a condenação da emissora em 1ª e 2ª instâncias. Recorrem por exemplo da decisão que diz que Henning não vai precisar pagar os honorários dos advogados de Sílvio caso saia derrotado. O TST vai analisar ainda um recurso do âncora que quer que sejam colocados de volta ao processo o pagamento pelo SBT de multa por danos morais e horas extras.
A ação movida contra a emissora corre desde 2017. Testemunhos de Karyn Bravo, ex-colega na bancada do “Jornal do SBT”; e dos também jornalistas José Nêumanne Pinto e Rodolfo Gamberini ajudaram Henning a demonstrar na Justiça o vínculo empregatício, uma relação de empregado e empregador com a empresa de Sílvio.
Bravo disse que “eram os diretores [da TV] quem definiam a escala de trabalho”. Já Gamberini afirmou que “havia uma hierarquia” e que Henning “não tinha liberdade para estabelecer a própria pauta ou tarefas”. Gamberini, que também já trabalhou no SBT, lembrou ainda que “quando contratado não teve liberdade para negociar qualquer cláusula; que não foi oferecida a contratação através do regime da CLT; não poderia se fazer substituir;” e “que o mesmo ocorria” com Henning.
Hermano Henning completou 74 anos em outubro. Ele acumula 41 de experiência no jornalismo. Em julho do ano passado, assinou com a Rede Brasil e assumiu a bancada do “RB Notícias”.
Globo: autuada e obrigada a pagar multa
Em 2010, por contratar 408 PJs de maneira irregular (jornalistas, apresentadores, atores, comentaristas, supervisores de produção artiística etc.), a TV Globo foi autuada em R$ 270 milhões por auditores da Receita Federal. Nove anos depois, a 2ª Turma da 4ª Câmara da 2ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) manteve a punição. A decisão desfavorável à emissora foi publicada em março deste ano. Cabe recurso.
Em seu voto, o relator do processo, conselheiro Denny Medeiros da Silveira, reconheceu as características principais de uma relação entre empregado e empregador: pessoalidade, habitualidade, subordinação e onerosidade (que é a existência de pagamentos do empresário ao funcionário). Para a Receita, a Globo usou do artifício da “pejotização” para não recolher contribuições previdenciárias. “O modo de agir do sujeito passivo [Rede Globo], ou seja, a estratégia por ele adotada para reduzir sua carga tributária […] restou devidamente evidenciada nos autos”, subscreveu, o conselheiro.
Paulo Zocchi, presidente do SJSP, explica que a “pejotização” não é um problema que persiste só nos grandes conglomerados de mídia. “Em pequenas empresas continua, em empresas mais afastadas da fiscalização, em empresas de assessoria de comunicação…” No entanto, ressalta que é possível lutar contra essa ilegalidade. “Há alguns anos, conseguimos obrigar a Editora Abril a contratar como ‘celetistas’ mais de 100 jornalistas, pressionamos o UOL a contratar quase 100 jornalistas. A nossa ação tem feito diferentes empresas reduzirem a ‘pejotização’.”
No dia 6 de novembro, o diretor do SJSP e funcionário da Editora Três, Alan Rodrigues, e Paulo Zocchi marcaram uma assembleia em frente a empresa, com os colegas, para definir a realização de uma possível paralisação. Mas a editora chamou a polícia para intimidar, dispensou os funcionários administrativos com horas de antecedência e proibiu os jornalistas de participarem, ligando para cada um deles com ameaças… Uma nova assembleia foi marcada. Rodrigues e os demais profissionais estão preocupados. “Estamos com medo de a empresa decretar falência a qualquer momento e sofrermos um calote completo dos salários atrasados.”