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O jornalismo como o conhecemos não existe mais

O jornalismo como o conhecemos não existe mais

Com pensamentos tão rápidos como a fala, Xico Sá faz reflexões sobre o ofício de jor­nalista, as mudanças na estrutura de tra­balho das últimas décadas e a impor­tância do posiciona­mento do profissional no atual cenário de crise política, social e humana. Nascido no Crato, Ceará, no meio da roça, sem luz elétrica, foi muito cedo para “a cidade grande”, o que era normal na região para os que quisessem estudar e trabalhar. Teve sua formação acadêmica e início de carreira como repór­ter em Recife, onde iniciou também uma trajetória como poeta marginal. Depois, seria letrista de canções para bandas do movimento mangue beat. Ao trabalhar como repórter investiga­tivo, descobriu o paradeiro de PC Farias, em 1993, na sequência de matérias sobre o Collorgate. Foi colunista da Folha de S. Paulo até 2014 e fala aqui de sua polêmica saída da empresa, quando decidiu decla­rar o voto em Dilma Rousseff. Escreveu também para a revista Veja, fez parte da bancada do programa Cartão Verde, da TV Cultura, e virou convidado frequente do Saia Justa, exibido pelo canal a cabo GNT. Autor de 13 livros, viu um deles, Big Jato, ser adaptado para as telas de cinema pelo diretor Cláudio Assis, em 2016. Esta entrevista, concedida no meio da tarde, foi uma reunião virtual entre cinco jor­nalistas refletindo sobre os caminhos da profissão, as transformações do mercado e o tratamento dado às grandes matérias pelas empresas de comunicação.

Estamos no Brasil de Bolsonaro, que foi eleito na base de fake news e governa num esquema pesado de desinfor­mação e mentiras, de combate ao co­nhecimento científico, um cenário im­pensável até pouco tempo atrás. Qual o papel do jornalismo nesse cenário?

Apesar desse cenário de catástrofe total, no momento nossa profissão está sem re­dação. A velha entidade chamada redação tem ido para o buraco ao longo desses tem­pos. O jornalismo como o conhecemos e como gastamos nossas vidas nele não existe mais, tem hoje outra feição. O cenário é de muita precariedade. Junta-se isso com o bolsonarismo, vira um quadro muito pe­sado. Mas sou um cearense esperançoso, sempre acho que tem alguma saída, que a gente logo vai se vingar disso tudo. Não que “a classe operária vá ao paraíso”, mas talvez tenhamos uma certa normalidade para trabalhar, para tocar a vida com a fa­mília, com o país. Estamos pagando o fato de a mídia, de forma geral, ter feito uma cobertura de campanha muito amena pelo que tínhamos pela frente. Foram poucas denúncias. Não se bateu para valer em nada, por medo da volta do governo do PT, por uma afinidade quase amorosa com o en­tão “posto Ipiranga”, o Paulo Guedes. Nós pagamos muito o preço de uma normaliza­ção que toda a mídia em algum momento acabou fazendo. Por exemplo, a fake news do kit gay, para pegar a mais emblemática. Ela é mostrada no Jornal Nacional e ele [Bolsonaro] sai carimbando, consolidan­do essa fake news na bancada do Jornal Nacional, quando mostra o livro de um autor francês dizendo que fazia parte do “kit gay do Haddad e do PT”. Não teve no dia seguinte uma matéria sobre esse livro, sobre o kit gay. Não estou nem cobrando uma contestação no momento em que ele apresenta na bancada do JN, mas não há nos dias seguintes, em nenhum telejornal, na imprensa em geral, uma contestação daquilo, que desmoralizasse aquela fake news. É uma imprensa que coloca adubo em muitas fakes news, por não ter desman­telado essas mentiras durante a campanha. Diante desse pavor de “e o PT?” acabou-se permitindo uma plantação de fake news que vingou no que estamos enfrentando hoje. Eu fiz o combate necessário em algumas colunas, redes sociais, mas o jornalismo no geral, na grande maioria, normalizou todo esse festival de loucura durante a campanha de Bolsonaro.

 

Você teve toda uma parte da traje­tória profissional como jornalista de política. Como era ser um repórter de política na Folha de S. Paulo? Como era cobrir política como repórter?

Antes da Folha eu já havia trabalhado na editoria de política do Estadão e da Veja, um pouco no Nordeste durante a campanha do Fernando Collor e, depois, uma segunda temporada em Brasília. Eu passei a minha vida de redação quase toda trabalhando na editoria de política. O re­pórter de política tinha mais o poder de enfrentamento da pauta. Havia um poder de negociação, de diálogo em qualquer pauta. Havia uma cota de liberdade maior para se derrubar uma pauta, por exemplo, e dizer: isso não faz sentido, esse político não está pensando assim, porque eu apu­rei nos bastidores do próprio partido, PT ou PSDB, que isso não está acontecendo. A gente tinha muito mais o poder de der­rubar ou mudar a pauta, mesmo quando era uma pauta da direção do jornal. Era mais difícil, mas conseguia. Óbvio que dava ali uma confusão, um conflito, mas era dentro do jogo do poder de um jor­nalista de política numa redação. E isso faz muita diferença. Em períodos elei­torais se tornava mais delicado, porque as direções dos jornais acabam criando pautas de maior interesse da casa, que representam pautas de afinidade de quem elas entendem como o melhor candida­to. Agora, hoje, em cada pauta você vai e justifica a voz do jornal, o que quer o pauteiro, o que quer a direção do jornal, sem contestação nenhuma.

 

Você consegue se lembrar de exem­plos concretos?

Eu me lembro de personagens. Um personagem extremamente complica­do no noticiário político era José Serra. Outro, Romeu Tuma. Esses dois persona­gens eram os mais trabalhosos. Era mais complicado você conseguir publicar uma notícia desfavorável aos dois. Não sei se havia uma dívida de favores ou só a ligação afetiva da casa com os dois personagens. Mas era um caso, praticamente, de blin­dagem. O repórter também ia aprendendo os limites. Dependendo dos personagens você já sabia aonde poderia ir, era meio aprendizado de repórter sobre ter ma­térias engavetadas, as que não podiam. Mas isso não tira o que falei sobre o poder do repórter de política ser infinitamente maior do que é hoje.

 

Quando, em sua opinião, começa a mudar isso? Quando o repórter dei­xa de ter esse poder e passa a haver direcionamento maior da direção da própria empresa jornalística?

A ascensão do PT ao governo muda muito o jornalismo do Brasil, no geral. Se, quando Lula alcançou o poder, fosse um desastre desde o primeiro momento, acho que não teria grandes alterações. Mas quando começa a dar muito certo, com respostas em pesquisas de popularidade dos governos do PT, passa a haver uma al­teração ainda mais significativa. Até então não havia esse tratamento com qualquer personagem do PT, era tudo bem diferen­te. O que esses gabinetes dos deputados de esquerda, em geral, abasteceram de denúncias muito importantes, nesse pe­ríodo pré-PT no governo, era um festival. Não tinha essa coisa de “não vai publicar porque veio do gabinete do Zé Dirceu”, ou porque é a fonte de esquerda ou a ori­gem da matéria veio do PT ou PCdoB. Não tinha isso, a coisa muda quando o PT se estabelece no governo.

 

E quanto à blindagem do PSDB no Es­tado de São Paulo? Porque eles estão praticamente há 30 anos no poder, mesmo com tanta denúncia, tanta coisa errada, mas sempre se ree­legem, tanto no governo do Estado, como estamos vendo isso acontecer na capital também. Como você vê isso?

Acho que a filosofia é de blindagem. Voltando à minha equipe da Folha nessa época, óbvio que eram negociações e ma­térias mais delicadas, mas tanto eu como o Emanuel Nery muitas vezes furávamos essa blindagem. Só que a diferença sempre foi a seguinte: se é uma matéria contra um membro do governo do PSDB, você tem que provar dez vezes mais qualquer assunto. Não era como uma fraude de li­citação, que basta saber o boato e já se publica. Com o governo do PSDB, você teria de levar quase o “batom na cueca”, mas consegui publicar muita coisa das bandalheiras da Sabesp. O Emanuel Nery publicou uma série muito interessante de escândalos da CDHU [Companhia de De­senvolvimento Habitacional e Urbano], quando Goro Hama era presidente da es­tatal. Então, rompia-se esse cerco, mas com o PSDB eram matérias com processos mais delicados do que se o alvo fosse o PT ou outros partidos. Essa blindagem talvez seja o caso mais grave que se tenha no Brasil inteiro em relação à imprensa, porque é muito longa, são três décadas.

 

Outro caso rumoroso dos anos 1990 foi a compra da reeleição de Fernando Henrique Cardoso. Como você com­pararia a cobertura desse caso e a do impeachment de Dilma Rousseff?

Foi uma matéria do Fernando Rodrigues, que entrevista o tal de “Senhor X”, que de­nuncia a história, provando que, no mínimo, o deputado Ronivon Santiago (Acre) foi comprado para o processo de reeleição de Fernando Henrique Cardoso. O Fernando Rodrigues lutou bravamente e conseguiu publicar a matéria, dentro desse embate que todos nós enfrentávamos na época. Era uma matéria muito delicada, então foram rodadas e rodadas de negociação. A grande diferença, fazendo a comparação com o período da Dilma, acho que é o tratamento dado ao desdobramento. O caso foi publica­do, mas, ao invés de se chamar CPI na capa ou se pedir para a Dilma renunciar, como foi o caso do editorial da Folha, o jornal dá um outro tratamento, um tratamento institucional, dá aquela amaciada. E os ou­tros veículos de comunicação praticamente abafam, não vão atrás, dão mais a resposta e as desculpas oficiais do governo do que a repercussão da matéria. Você tem a velha luta do repórter, no caso o Fernando Rodri­gues, tentando dar visibilidade à história, na sequência, porque ele tinha material. Mas isso não dura, não interessava a nenhum jornal do Brasil dar sequência a isso. Essa é a diferença, mas o mais importante foi que o Fernando Rodrigues enfrentou a pauta e conseguiu publicar, teve esse grande mo­mento, e foi uma denúncia infinitamente mais grave do que tudo o que saiu contra a Dilma. Era de derrubar governo, derrubar imediatamente.

Ainda assim existia um espaço para debater as pautas, e fomos perdendo isso. Nós, como Sindicato, vemos vários exemplos de veículos de imprensa que não só se impõem editorialmente de forma mais rígida, mas até extrapolam para controlar a forma de o jornalista se expressar fora do trabalho, em suas redes pessoais. Você já teve uma ex­periência nesse sentido, com alguma pauta que não poderia escrever?

Em muitas ocasiões, desde o começo mesmo lá no Recife, tem sempre maté­rias engavetadas, eu não gosto disso. A meu ver, se você mostra que uma matéria tem lastro, apuração, que faz sentido para contar uma história naquele jornal, acho que todas deveriam ser publicadas. Não acho normal esse engavetamento, mas enfrentei esse tipo de coisa, principal­mente, com esses dois personagens que citei: Serra e Tuma. E tive um caso que foi a minha saída da Folha, na segunda temporada em que trabalhei lá, em 2014. Eu falo em duas temporadas porque tem a temporada de carteira assinada e a de PJ, então na minha memória eu separo assim, uma parte de carteira assinada e a outra quando o mundo já estava começando a desmantelar e todos viraram PJ. Mas, então, esse caso de 2014 deu um certo barulho porque no período da eleição eu era colunista de esportes. E escrevi uma matéria sobre o “Fla x Flu” eleitoral, mais ou menos quando começou a se usar essa imagem do futebol nas eleições. Na coluna, basicamente usei linguagem de futebol e pego essa história dos jornais americanos assumirem candidaturas, porque defendo essa tese, inclusive para a Folha, e acabo dizendo que vou votar na Dilma, por achar que a casa está tão a favor de Aécio Neves e que os colunis­tas, embora não dissessem, tinham uma tendência grande para o Aécio. A minha saída do jornal foi mais por querer ver o jornal assumir, como os jornais dos Estados Unidos, do que o meu próprio voto. Usei a minha coluna para uma de­claração de voto e isso deu uma confusão miserável, pois eu não poderia publicar na coluna, teria que ser no Tendências/ Debates. Só sei que, nessa confusão, por não aceitar que a coluna fosse censurada, acabei deixando o jornal.

 

A coluna não foi publicada, então?

Não foi publicada. A opção que o jornal deu foi ir para a seção Tendências/Debates, como se eu largasse o meu espaço e entrasse como um leitor, alguém de fora. O manual do jornal não permitia que dissesse o voto. Mas escrevi aquilo porque, na minha leitura, pelo menos 90% dos colunistas estavam no dia a dia declarando até mais do que voto, era uma esculhambação nesse sentido. Ób­vio que tinha na minha atitude uma certa provocação também jornalística de enfren­tamento, porque eu sabia que isso era uma atitude polêmica, mas eu resolvi manter a coluna e manter minha opinião, que teve até algum respaldo com o ombudsman, no caso a ombudswoman. Ela entendeu que, diante do desequilíbrio tão grande pró-Aécio Neves, por que não poderia publicar minha humilde coluna de futebol com a minha provocação?

 

Você é torcedor do Santos, então já tinha uma posição fora do establish­ment ali dominante…

Sim, era essa a parada! Eu até vi que mudou essa compreensão da Folha. Hoje, você pode declarar a sua preferência elei­toral. Passou meio batido, mas saiu matéria sobre uma mudança do manual, faz uns dois meses. Houve uma mudança, já en­tendo que isso pode ocorrer em períodos eleitorais. Com certeza, eles entendem que não é o ideal para o jornal, mas o colunista pode declarar sua preferência.

 

Os manuais das grandes empresas pretendem cassar a liberdade de ex­pressão do jornalista fora do traba­lho. Obviamente, se você considerar a massa de jornalistas da Folha ou do Estadão, é claro que estão ali fazendo um trabalho jornalístico, não é para colocar opinião. Mas os manuais de redação querem limitar a possibilida­de de os profissionais se expressarem até em rede social. É algo muito forte agora, mas já vem de uns 15 anos para cá. Você teve esse problema?

Sou freelancer e não tenho um trabalho mais fixo em redação já há algum tempo. Tenho feito muita coisa nessa clandes­tinidade e procuro deixar claro que, se não pertenço tanto à casa, eu posso me pertencer mais. Mesmo assim o clima não é bom, tem um ar de advertência, de certo tom crítico em alguns assuntos. Acho que é uma angústia pela qual todos nós, jorna­listas no Brasil, passamos. Querer publicar alguma opinião sua em rede social e viver esse medo permanente, porque realmen­te corre-se o risco de perder o emprego, perder mesmo o freelancer, essa relação de trabalho tão precária. Tento manter minha independência e escrever com uma linha muito explícita. Já era um pouco o espírito, mas você cobrar a frieza, o san­gue de barata de um jornalista, com esse cenário que beira o fascismo, de violência, encarceramento declarado direcionado aos negros, é tão cruel que nos obriga a moralmente sair de qualquer questão pe­quena de manual e nos pronunciarmos. É uma omissão imperdoável para a história você ser jornalista hoje, em 2020, neste cenário apocalíptico, de negacionismo, fake news, Paulo Guedes com política de arrocho, inspirado no Pinochet, que cai nas ruas do Chile, mas não cai no Brasil, e passar com frieza, desfilar elegantemen­te nas redes sociais, sem fazer nenhum pronunciamento duro contra isso, é uma omissão imperdoável. Eu não me perdo­aria, daqui a dez anos, quando eu estiver lá numa rede, na Chapada do Araripe, lá no Crato, e lembrar desse período as­sim: “Puxa, fui um frouxo, que diabo eu fiz, eu sequer me pronunciei sobre tudo isso? Eu deixei passar?”. Esse momento exige pronunciamentos formais. E é por conta de não fazer esse pronunciamento, de obedecer cegamente aos bons modos do manual, que aconteceu a eleição do Bolsonaro. Deixamos passar.

 

Desde os tempos da presidenta Dilma percebemos que havia um interesse das empresas de comunicação contra o governo Dilma e de apoio ao Temer, apoio a pautas como reforma traba­lhista e depois favorável a Bolsonaro, via Paulo Guedes. Na sua opinião, mu­dou a maneira como as empresas jor­nalísticas conduzem as publicações e pressionam o governo com o trabalho dos jornalistas?

Tem um fenômeno que se instalou no final do governo Lula e seguiu, o antipetis­mo, que acaba sendo um modo de vida, de mudança do seu status na redação. Quanto mais antipetista um jornalista ficava, mais conseguia melhorar a vida na redação, ter mais destaque, assinar mais na primeira página, tornar-se um profissional com mais visibilidade. Quem apostou nisso, nas redações, teve ascensão. Foi criado um ofício, dentro do ofício de jornalista, que eram as pessoas escaladas ou que se autoescalavam para cumprir essa missão, muitas vezes com mais vontade do que os próprios patrões pediam. Teve uma safra assim, e foi em várias redações, passaram a incentivar muito isso. Vou falar da Fo­lha, que conheço mais: a Folha sempre foi mais rigorosa do que os outros jornais na [recusa à] combinação do mesmo lead, da mesma manchete. Na época da Lava Jato, a Folha abandona isso, para ir na mesma ladainha de todos os jornais, dar a mesma notícia e fechar nesse coro, do Sergio Moro, sem questionamento. Desde a campanha das Diretas Já, isso era um zelo da Folha, que beirava a paranoia. Nes­se sentido de todo mundo dar a mesma notícia, com as mesmas aspas, mesmo grá­fico: não podia. E quero dar esse exemplo da Folha, que sempre foi tão rigorosa, vi várias vezes repórter ser repreendido por trazer notícia combinada. Chega na Lava Jato, isso vai para o espaço.

A Lava Jato sempre pareceu mais uma fonte manipulando jornalistas do que jornalistas manipulando fontes, tinha uma discussão de que assim conse­guia vazamentos. Como você enxerga a cobertura da Lava Jato pela impren­sa brasileira?

Comeu na mão do juiz, do [Deltan] Dallagnol e dos promotores o tempo in­teiro, foram conduzidos. Até a gente che­gar na Vaza Jato, não se tem uma matéria significativa contestando nada. Voltando ao mundo da Folha, que é o jornal que mais conheço. Isso antes era obrigatório: “Pô, vamos fazer só essa louvação o tempo in­teiro?”. E na Lava Jato era a mesma notícia que O Globo publicava e todas as mídias publicavam. A mídia toda obedeceu às as­pas, aos gráficos, aos power points, aquele desastre lá do Dallagnol. Não teve um re­pórter escalado para fazer o contraponto, para questionar se tudo aquilo era certo, quando já tinha advogado reclamando que o processo havia sido conduzido sem di­reito democrático de defesa, havia muitos sinais. Todas essas desconfianças seriam boas pautas para, pelo menos, ter um con­traponto. Quando tem o contraponto é no escândalo da Vaza Jato que, acertadamen­te, a Folha publicou em algumas edições, creio até que por um certo sentimento de culpa por não ter atentado em momento algum para desvios da operação. Faltou para a imprensa o contraponto, poderia ter publicado infinitas matérias. Ter dado essa santidade para os promotores e para o Moro, sem questionamento, é um desas­tre para qualquer cobertura jornalística.

 

Temos discutido no Sindicato como diferenciar o que é uma fake news e o que é o interesse de uma empresa de comunicação, que, às vezes, mani­pula, não faz a cobertura que deveria, mas é diferente de fake news. Omitir ou manipular uma notícia é diferente de inventar uma notícia falsa. O que você pensa em relação a isso?

Excelente reflexão que devemos ter. Tem a fake news, que é a mentira decla­rada, e tem esse exemplo que dei agora: todos os jornais com o mesmo gráfico e a mesma matéria, quando o correto seria ter um imenso contraponto a uma notícia. Essa também é uma forma de manipu­lação. Concordo inteiramente com essa preocupação de vocês. É muito mais sofis­ticada a manipulação do que a fake news, que é muito na cara, explícita, quase uma pornochanchada. A manipulação é mais sutil. Recomendo, inclusive, o livro do Perseu Abramo, Padrões de manipulação na grande imprensa. É um serviço mais elaborado e sofisticado e, dentro desse pacote, cabe o que vemos hoje, princi­palmente em eleições: o desequilíbrio nos debates. Estamos criando debates com pessoas que pensam a mesma coi­sa. Não tem o da esquerda e o da direita, e quando tem é caricato. Essa forma que, às vezes, a CNN faz é mais para fazer o bafo, para fazer a festa na rede social, do que a preocupação com o debate. A meu ver seria uma coisa muito saudável, e não deixa de ser também um fator de mani­pulação ter no debate um só pensamento. Não há um debate em economia que fale uma linha do Paulo Guedes. Os debates passam pela questão moral, dão uma cutu­cada na ministra Damares, falam mal do Flávio Bolsonaro, mas chegou no Paulo Guedes… opa! Daí chega nessa coisa que, a meu ver, não faz o menor sentido, que é falar da ala ideológica, da ala técnica. O Paulo Guedes é muito mais ideológico do que qualquer um considerado da ala ideológica, mais do que a Damares, em certo sentido. Falar em política de arro­cho é tão ideológico quanto a Damares. Então, essa organização de debate com um lado só é outra coisa que faz muito mal ao jornalismo.

 

Vamos falar um pouco agora do futuro do jornalismo. O pessoal mais antigo era acostumado a apurar de outra forma, com fontes, telefonemas. Hoje percebo que não existe tanta checa­gem. Claro que isso também se deve ao advento do Google, internet. O que você espera do jornalismo?

Acho que, no geral, é mais uma linha de montagem: manda email para assessoria, pega “umas aspas”, vai montando uma cai­xa de texto, dentro de outra cultura. Não é mais aquela velha cultura de fazer uma fonte, cativar a fonte, ter informação exclu­siva. Isso não significa que não haja jovens fazendo excelente jornalismo, mesmo não sendo um jornalismo mais clássico, com a fonte, com apuração mais aprofundada. Eu julgo que é uma minoria que faz esse traba­lho mais aprofundado, pela precariedade das redações. O foca, coitado, tem que fazer o vídeo, escrever o texto, cobrar o escan­teio, sair pra cabecear, e ainda postar em rede social. Ele faz 11 mil trabalhos num só, numa tarde, e isso se reflete diretamente na qualidade do jornalismo que é feito. Além da cultura de apuração e de reportagem ser outra, ser menos aprofundada e mais de montagem, a gente tem que considerar que hoje tem que fazer dez pautas, texto e vídeo, você é o câmera, o gravador, o blo­quinho, é tudo ao mesmo tempo. Acho que isso comprometeu muito e deixa o texto e a apuração mais precários.

 

Estamos num momento de virtual extinção das redações. Temos o fa­tor econômico, que é o advento da internet, com a chegada das multi­nacionais da tecnologia demolindo as empresas tradicionais de mídia. E o jornalismo, para fazer uma boa re­portagem, precisa de muitos meios. Como fazer jornalismo nessas condi­ções, sem redação, como fazer jorna­lismo e sobreviver?

Enfrentamos esse momento de free­lancer. Quem ainda faz reportagem com mais fôlego, com tempo para apuração, é a moçada mais velha, que virou freelancer e sai vendendo matéria ora no Intercept, ora na piauí, ora num jornal, e consegue sobreviver. Porque se puxar isso pro chão da fábrica, pra quem está entrando, para o jornalista que está entrando na história, eles não têm armas para fazer jornalismo. Como já disse, tem que fazer tudo e ainda é cobrado para dar twitter. É uma cobrança miserável, absurda, é um ambiente zero propício para fazer o bom jornalismo. Mi­nha falta de jeito para as finanças não me deixa ver qual é a saída para as redações, ainda mais nesse confronto com rede so­cial. Eu sei como se faz [jornalismo] numa condição ideal que cheguei a fazer em muitos momentos e reclamei muito, até tinha motivos para reclamar, mas tinha possibilidade de viagem, de ficar bem ins­talado, de ter tempo para apuração, que é a condição adequada mínima, e sempre acaba rendendo, rende muito. Não tem um momento que isso não tenha rendido grande jornalismo. Chegava ao ponto de eu já ter as condições de viajar sem pauta alguma. Me despachavam para o Nordeste, sabendo, claro, os assuntos que estavam rolando, mas sem pauta definida. Teve uma matéria que fiz na Zona da Mata de Pernambuco, no começo da discussão da reforma da Previdência, no governo do Fernando Henrique Cardoso, sobre como os canavieiros jamais se aposentariam, por­que começavam a trabalhar com 10 anos e aos 30 estavam iguais aos personagens de Morte e vida severina, enterrados. Para essa eu saí sem pauta, mas como havia essa discussão nos jornais me meti lá e fui para feiras, botecos, praças, ouvir as pessoas. Então, tinha esse luxo. Agora, na maioria das vezes, mesmo quando tem viagem, o repórter já vai com o título pronto, o que é uma manipulação, você vai na obrigação de voltar com aquele título.

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