O Ministério Público Federal em São Paulo (MPF) fez mais uma denúncia contra o legista Harry Shibata e outros dois membros de sua equipe por fraude de laudos durante a ditadura militar (1964-1985). Nessa quarta ação, a procuradoria acusa o médico de ter colaborado com a versão falsa apresentada pelos agentes da repressão para o episódio conhecido como Chacina da Lapa (1976). A operação que envolveu 40 homens e resultou na morte de dois dirigentes do então clandestino PCdoB: Pedro Ventura Felipe de Araújo Pomar (63 anos) e Ângelo Arroyo (40 anos).
Depoimentos colhidos pelo MPF dizem que os militantes foram atacados enquanto ainda dormiam. “Ali, o que aconteceu foi o seguinte: cada buraco que tinha na casa eles meteram metralhadora, fuzil sei lá o que mais”, relatou a militante do PCdoB, Maria Andrade, responsável pela manutenção da casa, na Lapa, zona oeste da capital paulista. Após sobreviver ao ataque, Maria foi presa e torturada.
A ação foi resultado de quatro dias de vigilância dos agentes de repressão sobre a casa, usada pelos opositores na clandestinidade. No dia anterior, o economista João Batista Franco Drummont foi preso quando saía do imóvel e levado para o Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi), onde foi morto.
Haroldo Borges Rodrigues Lima, Aldo Arantes e Wladmir Pomar foram identificados e presos após terem deixado o local. Elza de Lima Monnerat e Joaquim Celso de Lima foram detidos em um carro que estava em frente a casa. A operação foi possível devido à delação de um membro do partido.
Perícia
O MPF diz que, por ordem de Shibata, os legistas Abeylard de Queiroz Orsini e José Gonçalves Dias, também denunciados, assinaram laudos necroscópicos falsos para ocultar as duas execuções efetuadas pelos agentes de segurança. Os médicos confirmaram a versão de que os dois militantes foram mortos ao resistir à ordem de prisão.
Ao analisar o laudo de Pedro Pomar, o médico Antenor Chicarino contestou as conclusões dos legistas. Segundo o especialista, arrolado como testemunha pela procuradoria, a descrição das lesões encontradas no corpo era confusa e alguns ferimentos foram omitidos. Não havia menção, por exemplo, de marcas de queimadura que podem indicar disparos feitos com muita proximidade, além de um tiro na parte de trás da cabeça, compatível com uma execução.
O relato do então repórter da TV Bandeirantes, Nelson Veiga, também desmente os laudos e a versão dos agentes da ditadura. Segundo o jornalista, que chegou ao local antes da equipe de perícia, os documentos apresentados pelos legistas mostram os corpos em posições diferentes das que ele viu. O repórter também nega que houvessem armas próximas aos mortos, como foi apresentado depois pelas forças policiais para justificar as mortes.
Legistas e a repressão
Um relatório elaborado pela Comissão Estadual da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo indicou que 22 médicos legistas fizeram parte do aparelho repressivo da ditadura. A partir da análise de 51 exames necroscópicos de opositores do regime, entre 1969 e 1976, foram identificados profissionais que fraudavam atestados de óbito para ocultar crimes do regime.
Harry Shibata ratificou, segundo o relatório, oito laudos contestados. O médico atestou a morte de Vladimir Herzog, em 1975, como suicídio. O atestado de óbito foi retificado em 2013 para constar que o jornalista também foi torturado até a morte no DOI-Codi.
Sem prescrição
O MPF ofereceu as denúncias a partir do entendimento de que os assassinatos foram cometidos em um contexto de ataque sistemático contra a população civil brasileira. Nesse sentido, a procuradoria argumenta que o direito internacional prevê que crimes contra a humanidade não estão sujeitos a legislações internas que preveem prescrição ou anistia. Esse entendimento está referendado, segundo o MPF, pela ratificação feita pelo Brasil, em 1998, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que submeteu o país à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Edição: Maria Claudia
Escrito por: Daniel Mello (Repórter Agência Brasil)