O repórter Ismail Al-Ghoul e o repórter-cinematográfico Rami Al-Rifi, ambos da Al Jazeera Media Network, emissora do Qatar, foram executados pelo Exército de Israel (“Forças de Defesa de Israel”, ou FDI) no dia 31 de julho após reportarem do campo de refugiados de Shati, em Gaza, perto da casa de Ismail Haniyeh, líder político do Hamas que foi assassinado em Teerã naquele mesmo dia pela manhã. Ismail e seu colega Rami foram alvo de um míssil.
Ismail foi detido por Israel em março, enquanto relatava um ataque das FDI ao Hospital Al-Shifa no norte de Gaza em março. “Ele foi liberado após 12 horas de detenção. De acordo com o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), ele relatou mais tarde como ele e vários outros jornalistas foram atacados por soldados das FDI, que ele disse terem destruído a tenda dos jornalistas e danificado seus equipamentos e veículos de imprensa”, relatou o jornal israelense Haaretz. “Ele também descreveu ter sido despido, vendado e ameaçado com tiros durante o período em que esteve preso”.
Ainda segundo o Haaretz, os dois correspondentes estavam usando coletes de mídia, e seu carro tinha placas de identificação quando foram atacados. “De acordo com a Al Jazeera, Al-Ghoul e Al-Rifi contataram a redação pela última vez 15 minutos antes do ataque. Durante a ligação, eles relataram um ataque a uma casa próxima e disseram que foram instruídos a sair imediatamente. Enquanto viajavam para o Hospital Árabe Al-Ahli, um ataque aéreo israelense teve como alvo seu carro”.
Desta vez, as FDI assumiram ostensivamente a execução dos jornalistas, por meio de uma postagem realizada no dia seguinte no seu perfil oficial na rede X (ex-Twitter), na qual celebraram o crime de guerra: “ELIMINADO: Ismail Al-Ghoul, um agente da ala militar do Hamas, terrorista Nukhba e jornalista da @AJEnglish. Como parte do seu papel na ala militar, Al-Ghoul instruiu outros agentes sobre como registrar operações e esteve ativamente envolvido no registro e divulgação de ataques contra tropas das FDI. Suas atividades no terreno foram uma parte vital da atividade militar do Hamas. As FDI e ISA continuarão a operar para eliminar os terroristas que participaram do massacre de 7 de outubro”.
No mesmo dia 1o de agosto em que as FDI emitiram seu infame comunicado, a Al Jazeera publicou nota na qual “refuta veementemente as alegações infundadas feitas pelas forças de ocupação israelenses na tentativa de justificar o assassinato deliberado de nosso colega, o jornalista Ismail Al Ghoul, e seu companheiro, o cinegrafista Rami Al Rifi”. A nota lembra que as forças de ocupação israelenses já haviam sequestrado Al-Ghoul em 18 de março de 2024, durante operação no Hospital Al-Shifa, “detendo-o por um período de tempo antes de sua libertação, o que desmascara e refuta sua falsa alegação de sua afiliação a qualquer organização”.
A Al Jazeera condena as acusações contra seu correspondente, que se baseia em “nenhuma prova, documentação ou vídeo”, e destaca na sua nota o que chama de “longo histórico de invenções e evidências falsas de Israel usadas para encobrir seus crimes hediondos, ao mesmo tempo em que nega a jornalistas de todo o mundo acesso à Faixa de Gaza para relatar a deterioração das condições humanitárias e o sofrimento dos palestinos em Gaza”. Informa ainda que Ismail “se juntou à Al Jazeera em novembro de 2023, dedicando todo seu tempo e esforço para cobrir a Guerra em Gaza, documentando as atrocidades das forças israelenses e relatando o sofrimento incalculável dos palestinos em Gaza, prova de que a única profissão de Ismail era ser jornalista”.
A Al Jazeera propõe uma investigação internacional independente dos crimes cometidos por Israel contra seus jornalistas e funcionários e pede que a mídia internacional “exerça o mais alto nível de cautela e responsabilidade ao abordar as alegações das forças de ocupação israelenses que tentam justificar seus crimes contra jornalistas em Gaza, que foram provados por instituições de mídia internacionais como sendo fabricados”.
No X, o repórter Hossam Shabat, baseado no norte de Gaza, lamentou no dia 31: “Hoje vamos enterrar meu colega e amigo Ismail Al-Ghoul sem cabeça. Ele foi alvo intencional e intensamente; seu corpo foi decapitado. Continuamos a ser alvos e o mundo está em silêncio”. A relatora especial da ONU Francesca Albanese comentou, em resposta a Hossam: “Ismail foi decapitado durante uma reportagem. Os meios de comunicação internacionais, que permaneceram em silêncio ou amplificaram a narrativa do opressor duramente mais de nove meses de genocídio na Palestina, deveriam ter vergonha”, frisou ela no X. “Muitas das notícias de Gaza que eles ignoraram ou das quais duvidaram, vêm de jornalistas palestinos que foram literalmente massacrados por fazerem o seu trabalho”.
Hassan Massoud, correspondente da Al Jazeera no Brasil, gravou um vídeo em protesto contra o assassinato do colega, que tinha apenas vinte e sete anos. “Infelizmente não estamos sentindo o apoio do mundo para mostrar a verdade do que está acontecendo lá. Isso tudo só está acontecendo porque esses jornalistas, que são 175 assassinados até este momento em Gaza, estão mostrando a verdade”, destaca Hassan, que participou da cobertura na Palestina. “Infelizmente o mundo não está mostrando a verdade”, enfatizou o jornalista.
De acordo com o CPJ, Ismail Al Ghoul, “um dos poucos repórteres que permaneceram no norte de Gaza”, tinha mais de 620 mil seguidores no Instagram e era conhecido por suas aparições na Al Jazeera. “Al Ghoul era casado e pai de uma criança, Zeina, que não o via desde o início da guerra. Ele foi enterrado na Cidade de Gaza em 31 de julho de 2024”.
Declaração das FDI é confissão de culpa, diz Sindicato dos Jornalistas Palestinos
O Sindicato dos Jornalistas Palestinos, baseado em Ramalah (Cisjordânia), considerou que a declaração das FDI sobre o assassinato de Ismail Al-Ghoul e Rami Al-Rifi é um documento oficial de condenação e de “reconhecimento pela primeira vez do envolvimento no assassinato de todos os jornalistas palestinos”. No entender do Sindicato, as alegações mencionadas na declaração (suposto envolvimento com a ala militar do Hamas) “surgem no contexto de uma campanha sistemática de mentiras, falsificação e engano da verdade e da opinião pública”, mas o que é importante é a sua admissão do assassinato de jornalistas palestinos.
As afirmações de Israel, diz o Sindicato, são refutadas pela natureza do trabalho jornalístico de Ismail “e por sua presença diária reportando acontecimentos no norte de Gaza, dia e noite, ao vivo”, o que podia ser comprovado por milhões de telespectadores que o viam diariamente cumprindo o seu papel profissional de jornalista. Ainda segundo a entidade sindical, “durante toda a guerra, ele viajava com seu uniforme de jornalista e carro de imprensa no norte de Gaza, em uma área ocupada pelas forças da ocupação, e dezenas de drones não saem dos seus céus”. Questiona: “Como ele poderia se mover se fosse procurado pela ocupação?”.
O Sindicato dos Jornalistas Palestinos chamou atenção para o fato de que, em termos legais, a declaração das FDI “é um documento de confissão e envolvimento no crime e uma condenação irrevogável de todos os crimes de assassinato e ataque a jornalistas palestinos”. Por outro lado, alertou, “é uma indicação de que as autoridades de ocupação pretendem cometer mais crimes de assassinato e liquidação de jornalistas e cometer massacres contra eles mais tarde”.
O Sindicato apela ao procurador-geral do Tribunal Penal Internacional, Karim Khan, para que acelere imediatamente o início dos procedimentos de investigação dos casos de assassinato de jornalistas e das queixas que lhe foram apresentadas pelo Sindicato e pela Federação Internacional de Jornalistas (FIJ), especialmente porque ele agora dispõe de um documento oficial de confissão do exército de ocupação de que matou jornalistas.
As estimativas para os números de jornalistas assassinados(as) por Israel em Gaza variam, mas já chegam a 120 casos, como estima a Federação Internacional dos Jornalistas (FIJ). O Sindicato dos Jornalistas Palestinos, porém, fala em 175 mortes. Somente em julho foram mortos outros nove jornalistas e profissionais de mídia, além de Ismail e Rami, segundo relato organizado pela FIJ com base nos dados do Sindicato dos Jornalistas Palestinos.
Em 29 de julho, Mohammad Majid Abu Daqa foi assassinado em um ataque israelense em Khan Yunis, ao sul da Faixa de Gaza. Em 13 de julho, o jornalista Mohammad Manhal Abu Armanah foi morto em outro ataque israelense em Khan Yunis. Em 6 de julho, o correspondente da agência de notícias Palestine Now, Amjad Al-Jahjouh, o apresentador da estação de rádio da Universidade Islâmica, Wafa Abu Dabaan, e Rizq Abu Shakyan, jornalista e editor da Agência de Mídia Palestina, foram mortos em um ataque israelense no campo de refugiados de Nuseirat.
Em 5 de julho, Saadi Madoukh, diretor da produtora Deep Shot Media, e Adeeb Sukkar, jornalista que trabalhava para a mesma mídia, foram mortos em um ataque israelense no bairro de Daraj, na Cidade de Gaza. No mesmo dia, o diretor de mídia da Al Quds TV, Mohammad Al Sakni, foi morto quando um ataque atingiu sua casa no bairro de Al-Tuffah, na Cidade de Gaza. Em 1º de julho, o editor-chefe da agência de notícias local Shams, Mohammad Abu Sharia, não resistiu aos ferimentos causados por um míssil israelense lançado perto da casa do jornalista na Cidade de Gaza.