Guilherme Feliciano, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), concedeu entrevista exclusiva ao jornal Unidade e apontou uma série de inconstitucionalidades entre as mudanças trazidas à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) pela reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) que entrou em vigor no último dia 11 de novembro.
Além da terceirização na atividade principal das empresas, o negociado sobre o legislado (Art. 611-A), que estabelece que a Convenção ou Acordo Coletivo prevalece sobre a lei, assim como a jornada de 12 horas trabalhadas por 36 horas de descanso (Art. 59-A), estão as alterações que ferem a Constituição Federal, segundo o juiz.
O negociado sobre o legislado é inconstitucional “devido à possibilidade de negociar em prejuízo do trabalhador. Não tem previsão constitucional, por exemplo, a negociação em torno de controle de ponto ou de grau de insalubridade”, disse Feliciano. Quanto à jornada 12×36 por mero acordo individual entre o trabalhador e a empresa, o presidente da Anamatra ressaltou que a Constituição Federal é clara quanto à jornada limitada em 8h diárias ou 44h semanais, com exceção dos casos em que há negociação coletiva.
A Lei 13.467/2017 vai precarizar ainda mais as condições de trabalho as empresas jornalísticas, mas a direção do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) ressalta que a contratação de Pessoa Jurídica (PJ) no jornalismo continua sendo fraude e a entidade continuará combatendo a pejotização. Segundo o presidente da Anamatra, apesar da reforma trabalhista, as ações para reconhecimento de vínculo empregatício continuam sendo possíveis e os processos podem ser movidos normalmente na Justiça do Trabalho. Confira a íntegra da entrevista.
Com a reforma trabalhista em vigor, como é que ficam os casos de “pejotização”? Pois essa contratação se tornou comum no jornalismo para burlar direitos da categoria, como a jornada diferenciada.
Com base na habitualidade, pessoalidade e subordinação do jornalista PJ, a ação do Sindicato para o reconhecimento do vínculo continua sendo possível e, mesmo com a reforma, isso não muda. O que muda com a Lei 13.467 é que, com a figura do trabalhador autônomo exclusivo, ou seja, que presta serviço apenas para uma empresa e faz isso de forma habitual – e que a despeito disso tudo não é empregado – a pejotização tende a aumentar. Na medida em que as empresas optem por esse tipo de contrato, esses trabalhadores, a rigor, não serão mais empregados da empresa e, portanto, não pertencerão à categoria profissional.
Agora, assistir juridicamente esses jornalistas para que se reconheça a fraude, como o artigo 9º da CLT prevê ao definir que é nulo qualquer ato ou negócio jurídico que afaste os direitos previstos na CLT, esse artigo não foi revogado. Mesmo nessa figura do “autônomo exclusivo”, se houver fraude e pejotização que esconde o vínculo de emprego, o jornalista pode perfeitamente reconhecer em juízo o vínculo e o sindicato pode assisti-lo normalmente, não há nenhum impedimento.
A reforma trabalhista liberou a terceirização na atividade-fim das empresas? O que muda em relação a isso na Lei 13.467?
Há outros projetos sobre a terceirização, como o PLC 30/2015 [Projeto de Lei da Câmara], remetido ao Senado. Esse projeto ainda está em tramitação e, em tese, pode ser aprovado, mas a reforma trabalhista de fato operou uma modificação sensível nesse tema, pois o governo federal já tinha patrocinado e sancionado, em março último, a lei geral sobre o trabalho temporário [Lei nº 13.429] exatamente para prever a terceirização. Até então, a figura da terceirização era uma construção da jurisprudência, mas não havia nenhuma lei tratando disso, e a ideia era que se avançasse no sentido de se permitir a terceirização na atividade-fim. Porém, o fato é que a Lei nº 13.429 não diz isso textualmente. A legislação fala em possibilidade de empresas serem contratadas para prestação de serviços em caso de atividades específicas e determinadas, mas não utilizou em nenhum momento a expressão “atividade-fim” ou “atividade principal”. Então, na minha avaliação, aquela lei não autorizava, ainda, a terceirização na atividade-fim.
Com a reforma trabalhista – até porque, provavelmente, o governo federal percebeu que havia essa dificuldade na primeira lei e que isso levaria a muitas disputas e interpretações -, a reforma alterou de novo o mesmo artigo do trabalho temporário, que foi mudado novamente alguns meses depois com a reforma trabalhista para, neste caso, sim, dizer que essas empresas de prestação de serviço podem fornecer mão-de-obra para qualquer atividade de outra empresa, inclusive na atividade principal. Agora, com a Lei 13.467, é textual na legislação a possibilidade de terceirizar na atividade-fim.
Mas essa liberação da terceirização tem legalidade perante à Constituição?
A partir de agora há duas possibilidades. Primeiro, a discussão da constitucionalidade disso, que já está no Supremo Tribunal Federal (STF), para que se decida se é ou não possível terceirizar atividade no sentido de que uma empresa coloque seus trabalhadores dentro do parque industrial de uma outra empresa.
Imagine uma montadora com uma linha de produção e dois trabalhadores, um empregado da montadora e outro da terceirizada. No Brasil, sabemos que os salários dos terceirizados são de 20% a 30% inferiores aos dos efetivos. Então, serão dois trabalhadores fazendo a mesma coisa, na mesma linha de produção e recebendo salários diferentes, o que fere o princípio constitucional de igualdade e fere qualquer isonomia. Neste caso haveria uma inconstitucionalidade porque não é possível que se interprete a lei dessa maneira e, por isso, é um caminho a discussão da constitucionalidade em abstrato dessa novidade que veio com a reforma.
Por outro lado, a partir do momento em que isso começar a ser julgado pelos juízes do trabalho, eles vão buscar uma interpretação consonante com a Constituição. Já surge também a discussão se poderemos distinguir exatamente para evitar um juízo de inconstitucionalidade do texto, distinguir entre as hipóteses de terceirização.
Entre essas hipóteses, onde estaria a diferença entre o que pode ser considerado constitucional ou não?
Uma empresa de construção civil poderia contratar uma outra empresa para uma atividade especializada qualquer no contexto daquela construção, como a pintura, por exemplo. Essa empresa contratada levaria seus empregados à obra e, sendo subordinados à ação dessa empresa, fariam o trabalho de pintura, ainda que nós entendamos que é objeto social de uma construtora todas as etapas da construção, inclusive a pintura. Isso seria possível.
Outra coisa seria essa locação de mão de obra, que é como no caso da montadora em que o trabalhador vai para a empresa tomadora de serviço, sob as ordens dos supervisores dessa empresa contratante, e vai receber um salário menor, e isto é que me parece inconstitucional.
Existe a possibilidade de que se caminhe para uma distinção dessas hipóteses de terceirização entre a empresa que presta um serviço especializado – e na qual os trabalhadores que realizam esse serviço são subordinados à própria empresa contratada – dessa outra hipótese de locação de mão de obra em que, na verdade, a empresa contratada somente fornece braços que vão trabalhar dentro do parque produtivo da contratante sob as ordens de seus supervisores, pois, aí, sim, há uma grave violação do próprio princípio constitucional da isonomia.
Que outros pontos da reforma podem ser considerados inconstitucionais e que podem levar a outros debates?
São vários, como o negociado sobre o legislado [Art. 611-A e 611-B] devido à possibilidade de negociar em prejuízo do trabalhador porque isso não tem previsão constitucional como, por exemplo, a negociação em torno de controle de ponto e enquadramento do grau de insalubridade. O grau de insalubridade é definido a partir de uma análise de um engenheiro do trabalho segundo os padrões da NR-15, a Norma Regulamentadora de Atividades e Operações Insalubres do Ministério do Trabalho. Por isso, a rigor, sequer o juiz é quem avalia se há ou não insalubridade e em que grau.
A CLT diz que o juiz precisa de um perito, de um engenheiro, porque o juiz é especialista em direito, não em engenharia. Esse perito é quem vai dizer se há ambiente insalubre, qual o grau de insalubridade de acordo com essa NR-15 e, então, é que o magistrado vai examinar e acatar ou não a opinião do perito, mas o juiz precisa dessa opinião técnica. De repente, a reforma trabalhista vem e afirma que isso pode ser objeto de negociação coletiva.
A NR-15 diz, por exemplo, que em caso de exposição a material infectocontagioso, a insalubridade se dá em grau máximo e, de repente, num hospital, por meio de um acordo coletivo, se estabelece que essa insalubridade será grau 1. Isso também me parece inconstitucional porque a Constituição não permitiu que a negociação coletiva se dê a esse nível para esse assunto.
De que outras formas a negociação individual vai afetar os trabalhadores?
Um exemplo é a jornada 12×36 por acordo individual, ou ainda todas as matérias constantes do Art. 611-A que podem ser negociadas individualmente se o trabalhador for o chamado “hiper suficiente econômico”, ou seja, aquele que recebe mais que dois pisos do Regime Geral da Previdência Social, cerca de R$ 11.500, e que tem formação universitária. Este sujeito, pela reforma, pode negociar qualquer coisa individualmente, sem o sindicato, e estas hipóteses não existem na Constituição Federal.
A Carta diz claramente que a jornada é de 8 horas diárias e 44 semanais, salvo negociação coletiva. Então, não tem possibilidade de negociação individual, e muito menos a possiblidade do trabalhador que, por ganhar R$ 11.500 – como se isso fosse uma fortuna – possa negociar diretamente, sem o Sindicato, para baixo do limite legal. Essa distinção de hiper suficiente ou hipossuficiente jamais foi feita pela Constituição.
E como fica o acesso à Justiça a partir da vigência da Lei 13.467?
A tarifação de dano moral e as restrições de acesso à Justiça do Trabalho são outras questões. Com a reforma trabalhista, a Justiça do Trabalho vai ser o único ramo do judiciário em que o trabalhador tem reconhecida a sua condição de pobre, no sentido jurídico do termo, o juiz reconhece a gratuidade oficial, mas esse trabalhador vai ter que pagar, a despeito disso, os honorários do perito, as custas advocatícias…Isso não existe em nenhum outro ramo do judiciário. Tanto é verdade que a respeito desse último ponto o próprio procurador-geral da República [Rodrigo Janot] ingressou, no último dia 25 de agosto, com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin). Então, a meu ver, há várias inconstitucionalidades nesse texto.
Diante da vigência da reforma, quais os principais cuidados e questões que os jornalistas devem observar no momento da contratação? E quais os cuidados que a Anamatra recomendaria aos que estão empregados?
O ideal nessas situações é que o trabalhador tenha sempre a orientação de seu sindicato. Os sindicatos precisam ter fundamentalmente agora uma atenção enorme, uma expertise no que diz respeito à negociação coletiva porque várias dessas previsões legais, que vieram para pior, a rigor, podem ser melhoradas pela negociação coletiva. Por exemplo, a jurisprudência vinha entendendo que, nas demissões em massa, havia sempre a necessidade de diálogo prévio com o sindicato e a reforma veio fazer o contrário disso, afirmando que pode haver demissões coletivas sem que haja antes um diálogo com o sindicato. Mas, independentemente disso, sabemos que há várias negociações coletivas, até em função de jurisprudência no Tribunal Superior do Trabalho, nas quais já havia a previsão de que, antes de demissões em massa necessariamente as empresas teriam que negociar com o sindicato. Essas cláusulas agora são fundamentais para que se consiga ter essa garantia. Os sindicatos precisam lutar por cláusulas como essa.
Outro caso é o da chamada ultratividade das cláusulas coletivas. O TST vinha afirmando que, uma vez terminado o período de vigência de um acordo ou convenção coletiva, enquanto não houvesse outro acordo ou convenção prevendo de modo diverso determinado direito disposto na primeira convenção, que esta cláusula continuaria em vigor até que fosse negociada a assinatura de um novo acordo coletivo. A reforma veio dizer que não será mais assim, que há uma data em que expira o acordo ou convenção. Porém, nada impede que, em negociação coletiva, se insira textualmente uma cláusula dizendo que, sim, haverá ultratividade da convenção coletiva até que venha a nova negociação.
Os trabalhadores e trabalhadoras organizados, podem, sim, por força dos sindicatos, lutar para que essas cláusulas sejam garantidas nos acordos e convenções, e muitos dos prejuízos que vieram com a reforma trabalhista poderão ser superados exatamente dentro desse espírito do negociado sobre o legislado, porém, numa perspectiva constitucionalmente muito mais correta, que é o negociado que vem para garantir a melhoria da condição social do trabalhador e não o contrário.
Escrito por: Flaviana Serafim – Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo