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Noite inesquecível no Sindicato! Apresentação de pesquisa de John French mobilizou fotojornalistas que cobriram greves metalúrgicas de 1979 e 1980

Pedro Pomar

Foi inesquecível a noite de 6 de maio de 2025 para quem esteve no histórico Auditório Vladimir Herzog do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP), para assistir à apresentação dos primeiros achados da mais recente pesquisa do historiador norte-americano John French sobre a classe trabalhadora brasileira — que diz respeito à atuação de fotojornalistas na cobertura das greves metalúrgicas de 1979 e 1980 na região do ABCD — e também aos depoimentos de experientes repórteres-fotográficos(as).

Havia grande expectativa em relação a essa atividade, seja pela notável trajetória de French como pesquisador no Brasil, seja pela importância histórica das greves metalúrgicas daquele período, que contribuíram com a derrubada da Ditadura Militar (1964-1985). Mas ninguém poderia imaginar que seu estudo, que teve como ponto de partida a surpreendente exposição de fotografias da greve de março de 1979, organizada dias depois pelo jornal Diário do Grande ABC no Paço Municipal de São Bernardo do Campo, pudesse desencadear relatos tão emocionantes, tão ricos em detalhes, tão reveladores e cativantes.

Professor titular da Universidade Duke (Carolina do Norte, EUA), French é autor de obras importantes, como a biografia Lula e a política da astúcia: de metalúrgico a presidente do Brasil (2022, Expressão Popular/Perseu Abramo), Afogados em Leis: Direito do Trabalho e Cultura Política Brasileira (Perseu Abramo, 2001) e O ABC dos Operários: Conflitos e Alianças de Classe em São Paulo 1900-1950 (Hucitec/Prefeitura de São Caetano do Sul, 1995). Na pesquisa atual, ele conta com a participação de sua esposa, a antropóloga Jan Hoffman French, professora da Universidade de Richmond.

Ao tomar a palavra, French, após agradecer ao SJSP pela oportunidade (“é uma grande honra ficar nesta sala”), situou em rápidas pinceladas a conjuntura do final dos anos 1970. “Era uma época muito pesada”, principiou. Citou que o jornalista Antonio Félix, diretor da Tribuna Metalúrgica, jornal do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, também fazia parte da diretoria do SJSP. “E era um momento de coragem, um momento também de inspiração para muitos”, destacou, lembrando que os estudantes retomaram as manifestações de massa contra a Ditadura Militar já em 1976, portanto três anos antes dos operários, e que os jornalistas como categoria tiveram um papel relevante.

“Cheguei aqui em 1980, atraído pelas notícias na primeira página do New York Times sobre as greves metalúrgicas no subúrbio industrial do ABC durante a Ditadura Militar, contra grandes companhias multinacionais de automóveis. E era um acontecimento mundial, que colocou o ABC em termos históricos”, rememorou. “Na realidade, ninguém em São Paulo sabia muito o que estava acontecendo no ABC, porque o ABC e São Paulo são mundos à parte”, ressaltou. Depois desse contato inicial, retornou aos EUA e voltou ao Brasil em 1981, permanecendo até 1982, “pegando as primeiras eleições diretas para governador”. Então voltou novamente a seu país, para terminar o doutorado.

French contou que o fato de ser um estrangeiro pesquisando o mundo sindical lhe trouxe desafios, especialmente no ABC. “O norte-americano aí ‘mexendo em coisas’ obviamente é uma pessoa da CIA”, diziam, “então foi necessário também quebrar aquela resistência”. Porém, advertiu, sua pesquisa não tinha relação direta com as greves daquela época. “Qualquer momento que alguma coisa surgiu, organizavam um piquete, falavam de alguma coisa, eu saía da reunião, dizia: ‘Estou fazendo uma pesquisa do movimento sindical e da esquerda no ABC antes de [19]64’. E o meu primeiro livro começa em 1900 e vai até 1950”.

John French. Foto: Cadu Bazilevski

Só posteriormente é que o pesquisador resolveu dedicar-se ao estudo da questão dos metalúrgicos e das greves dos anos 1970. “Mas, quando Lula começou a ‘subir’, com a possibilidade de virar presidente em 1994, 1998, eu decidi fazer uma biografia, que pode ser meio controvertida, vocês podem ter uma opinião sobre isso, e há um debate sobre a questão do papel do indivíduo. Mas o que vou fazer hoje é falar de um novo livro que estou escrevendo com a minha esposa. Já começamos em 2015, a covid chegou a derrubar os planejamentos. Neste momento, o título é Fotojornalismo Puro, sobre a questão da fotografia e a cobertura jornalística, usando o final das greves de 1979 e 80, mas, especialmente, em 1979”.

Após essa indispensável introdução, French passou a tratar do tema que vem tomando sua atenção, e a de Jan, nos últimos anos. “Vou falar sobre um episódio esquecido na história, mas que, na realidade, deve ocupar muito mais espaço, e sobre exatamente a questão do papel do Diário do Grande ABC, que estava entre os quatro, cinco maiores jornais em circulação na área metropolitana, mas que a maioria das pessoas, mesmo as que escreviam sobre as greves, nunca deram uma olhada. Mas eles e a equipe, o dono, o diretor, os jornalistas e os fotógrafos do Diário do Grande ABC, fizeram a melhor cobertura, a mais completa, mais extensa, e verdadeiramente impressionante”, avaliou, com seu estilo contido.

Apenas duas semanas depois da greve, o jornal promoveu a exposição no Paço Municipal, passando a expor as imagens captadas e publicadas no decorrer do movimento grevista dos metalúrgicos. “Permaneceu por duas semanas no saguão do Teatro Cacilda Becker, na Prefeitura Municipal de São Bernardo. Era uma tentativa de documentar, de discutir, de mostrar as fotos que foram tiradas pelos fotógrafos, talentosos e jovens, como vamos ver”, explicou French. “Isso foi em 15 de abril de 1979, eles publicaram um artigo sobre o planejamento dessa atividade de duas semanas, com algumas das fotos que seriam incluídas”, além de um retrato do diretor de fotografia do jornal, João Colovati, ele próprio autor de algumas das imagens.

A histórica exposição de abril de 1979 contou com a participação de nove jovens repórteres-fotográficos, incluindo Fernando Ferreira, que a convite do SJSP compareceu à atividade de 6 de maio último. French e sua esposa entraram em contato com diversos deles e os entrevistaram, “para compreender melhor e falar com eles sobre o processo de documentação da greve”. Diferentemente dos jornais da capital, explicou o pesquisador norte-americano, durante toda a greve o Diário do Grande ABC publicou as fotos e informações sobre a greve na primeira página, com grande destaque.

Fernando Ferreira. Foto: Cadu Bazilevski

O título do livro em preparo pelo casal, Fotojornalismo Puro, foi retirado de uma frase empregada por Colovati para definir o espírito da exposição realizada no Paço Municipal. “Estava totalmente cheia, milhares assistiram à exposição e o livro de presença foi assinado por 1.800 pessoas”, observou French. Mais de 1.400 pessoas informaram, na lista, sua ocupação profissional, dado que ele valorizou. “A primeira pessoa a assinar foi Lula”, mas também assinaram o livro o então prefeito de São Bernardo do Campos, Tito Costa (1922-2023); o prefeito de Ribeirão Pires; vereadores da região e, ainda, “centenas e centenas de operários”.

Na avaliação do pesquisador, a exposição fotográfica do Diário do Grande ABC provocou “enorme impacto” na sociedade local e foi “um acontecimento verdadeiramente transformador”. Porém, advertiu, “não era apenas uma mostra”, porque o jornal também organizou mesas-redondas a cada noite. “Você pode ver que eles tiveram no segundo dia David de Moraes [1936-2024], presidente do Sindicato dos Jornalistas, que também falou várias vezes nas assembleias em Vila Euclides. Teve também a mesa-redonda com repórteres e fotógrafos debatendo com o público. Os líderes do sindicato, uma palestra sobre mulheres trabalhadoras e também um ex-ministro do Trabalho, que falou sobre a conjuntura política”.

Ele leu alguns dos comentários dos repórteres-fotográficos divulgados pelo Diário do Grande ABC em matéria publicada no dia 15 de abril de 1979, quando a exposição foi aberta ao público. Vários deles se revelaram perplexos com a brutalidade da repressão policial. “Fiquei impressionado com a atitude dos policiais que agrediam com cassetetes e bombas os operários, sentindo-me em um campo de batalha”, disse Alberto Murayama. Ricardo Hernandes, por sua vez, declarou-se abalado “pelas agressões físicas e morais sofridas por jornalistas por causa do seu trabalho honesto, levando os fatos ao conhecimento do público”.

Gustavo Luiz Lima confessou que “uma certa alegria, um certo entusiasmo, e até uma identificação tomaram conta de mim nesses dias da greve, pois, cobrindo assembleias com mais de 80 mil trabalhadores, isso seria o mínimo que uma pessoa poderia sentir”. Cassiano Polese, que French só viria a conhecer pessoalmente na atividade do SJSP, também disse o que pensava: “Metalúrgico, nunca esqueça que um dia teve que correr da polícia porque reivindicava uma mesa mais farta. Ninguém esquecerá uma assembleia de 90 mil pessoas, nem o Grande ABC, nem o Brasil”.

Embora respeite tais opiniões, French ponderou que no estádio de Vila Euclides, onde foram realizadas as assembleias mais importantes do movimento grevista, “não cabem 80 mil pessoas de jeito nenhum”. As estimativas mais realistas eram as de 60 mil pessoas, acredita ele. No total, acrescentou, houve mais de quarenta assembleias em Vila Euclides entre 1979 e 1980.

Outro depoimento publicado à época e lido pelo historiador foi o de Evaldo Soares: “Foram 15 dias em que não faltou a força policial, constituída por um número incontável de homens. Sem refletir, as armas venceram no momento, a força falou mais alto, mas nem por isso os metalúrgicos perderam sua coragem”, assinalou. Assim, observou French, nota-se claramente “uma admiração” dos fotojornalistas pela atitude dos metalúrgicos. Na mesma linha, assim se pronunciou Cassiano Polese: “Presenciei piquetes, violência policial e, acima de tudo, uma união, um sentido coletivista muito grande entre os grevistas”.

Outra observação por parte dos jovens repórteres-fotográficos é que eles não imaginavam que a greve viesse a ganhar a dimensão e a importância que ficaram patenteadas em termos de número de pessoas que apareceram, de entusiasmo, de envolvimento e luta. “Porque você não pode compreender a greve de 1979 sem saber que não eram apenas trabalhadores e patrões”, resumiu French. Muitos setores, incluindo segmentos da classe média, sentiam-se sufocados pela Ditadura Militar. A mobilização dos metalúrgicos, disse Gustavo Lima no texto publicado em 15 de abril, representava uma ruptura: “Estamos cheios dessa coisa aí”.

O presidente do SJSP, Thiago Tanji, pronunciou-se rapidamente ao final da apresentação de French. “Sempre falo quando tem algum evento aqui que o Auditório Vladimir Herzog não é um espaço qualquer. Aqui é um espaço de história, de luta, de resistência pela democracia e pelos direitos humanos, mas também é um espaço de encontros, um espaço de convivência, um espaço em que a gente pode rememorar as lutas do passado para nos dar energia para as lutas do presente”, assinalou.

Thiago Tanji. Foto: Cadu Bazilevski

Tanji recomendou a leitura de Lula e a Política da Astúcia — “é um livro excelente, principalmente para nós, do movimento sindical, porque é uma biografia política e uma biografia sindical”. Ele agradeceu à diretora Vilma Amaro por sua contribuição à atividade: “Eu fiquei muito emocionado também em estar folheando a Folha de São Bernardo e ver as suas assinaturas ali com as reportagens falando do Lula, falando das greves da ABC”. 

Outro que se disse emocionado por estar no auditório do SJSP foi Fernando Ferreira, que iniciou o depoimento falando das origens populares de sua família na região do ABC. “Meu pai é operário, nasci e cresci num bairro metalúrgico, nasci na Vila Prudente e fui morar em Santo André, do outro lado da linha, onde eram os bairros operários. Porque em Santo André tem a linha do trem, então de um lado é a área dos operários e do outro lado era a área da elite da época”, definiu.

Ferreira exibiu imagens de sua autoria, bem como algumas de autoria desconhecida, e discorreu sobre o processo de produção e organização do material fotográfico utilizado na exposição sobre a greve. “Vocês vão ver, nem todas as fotos são minhas, por quê? O que aconteceu? Foi um volume muito grande de fotos. E aí acabava ficando lá, um dava opinião, o outro dava e acabava ficando em cima da mesa. Aí, quando eu, às vezes, olhava, estavam as fotos lá dentro do lixo já. Alguém passava, jogava as fotos dentro do lixo, e eu falei: ‘Pô, mas não pode fazer isso’. Pegava, recolhia a foto e guardava. Então, eu tenho isso daí”.

Mostrou belas fotos, como a que tirou de uma assembleia dos metalúrgicos realizada no pátio da Igreja Matriz de São Bernardo do Campo, vista do campanário da Igreja, ou a do primeiro encontro entre Leonel Brizola (1922-2004) e Lula, na sede do Sindicato dos Metalúrgicos: “Foi a primeira vez que eles estavam se encontrando”. Outras imagens que exibiu registram as dramáticas “batalhas” travadas entre os metalúrgicos e as forças policiais, “porque, para vocês terem uma ideia, a Polícia Militar não tinha equipamento para a repressão”. Assim, a PM improvisava para bater nos operários: “A gente tem foto lá de PM carregando pedaço de pau, sarrafo. O cara está com sarrafo nas costas, assim, e quebrava nas costas do povo mesmo”.

Ao estampar no telão do auditório a fotografia de um show realizado no 1o de maio de 1979, em que Elis Regina (1945-1982) aparece sorridente ao lado de Lula, Ferreira não conseguiu esconder os sentimentos despertados por essa lembrança. “Gente, vocês não têm ideia da emoção que eu tenho dessa imagem, sabe? Porque já naquela época os nossos ídolos, os meus ídolos estavam ali no palco, não é?”. Porém, a vontade de fazer uma boa cobertura esbarrava em limitações técnicas e materiais.

“A gente saía para cobrir, era uma lente e seis rolos de filme. Tinha que se virar com isso. Esse material específico, eu fui no meu momento de folga. Não era a cobertura do jornal, não. Só que eu me lembro que eu fui lá, eu estava com uma lente de 50, tanto é que vocês veem o corte. Dei uma recuada e fiquei com medo de cair do palco, porque o palco era de 3 metros de altura. Se eu caísse dali, eu estava ferrado. Para vocês terem uma ideia, tinha o Jards Macalé, Fagner, Gonzaguinha, João Bosco, Elis, quem mais?”.

O próximo a falar foi Juca Martins, outro veterano repórter-fotográfico, que exibiu uma seleção de 13 imagens, na sua maioria suas mas também de outros autores, em especial da Agência F4, da qual ele foi um dos fundadores, ao lado de Nair Benedicto, Delfim Martins e Ricardo Malta. A agência lançou um livro sobre a greve de 1980, que teve parte da tiragem doada ao fundo de greve, “para eles venderem o livro e arrecadarem dinheiro para comprar alimentos”, lembrou.

“Esse livro pegou os fotógrafos da F4, mas a gente convidou todo mundo que estava fotografando. O pessoal do Diário do Grande ABC acabou não sendo convidado, infelizmente. A capa do livro é da Nair. É uma assembleia dentro da Igreja Matriz de São Bernardo do Campo”. A contracapa reúne imagens de Hélio Campos Melo e do próprio Juca Martins. A escolha das fotografias a serem estampadas na capa resultou de uma “puta discussão” entre os autores, relatou.

Juca Martins, repórter fotográfico. Foto: Cadu Bazilevski

A trajetória profissional de Juca se iniciou no Jornal da Tarde, na Folha de S. Paulo, passou pela Editora Abril — revistas Placar, Veja, Realidade — e chegou à revista Visão, cujo editor de cultura, na ocasião, era Vladimir Herzog (1937-1975). “Eu trabalhei e fiz várias matérias a pedido dele”. Juca deixa Visão para assumir a secretaria gráfica do jornal Movimento. Em 1977, ele passa a trabalhar para a IstoÉ, que se encontra numa fase “politicamente avançada, ousada, tanto é que é a primeira revista semanal que coloca o Lula na capa da revista”, e abre espaço para as questões do ABC.

A partir daí, ele traçou uma cronologia dos movimentos que levaram à derrubada da Ditadura Militar. Que incluem, além das greves metalúrgicas do ABC, a reação popular ao assassinato do jornalista Vladimir Herzog (1975), a retomada do movimento estudantil (1976-77), sob “pancadaria total, a polícia batendo, bomba de gás”; os movimentos contra a carestia (custo de vida) na Praça da Sé, “donas de casa, panela vazia, a porradaria geral também, a Polícia Militar ocupa a praça e aí cerca o pessoal e começa a jogar bomba, o pessoal se refugia na igreja [Catedral da Sé], a igreja abre as portas e eles entram”; o movimento pela Anistia (1979), a volta dos exilados; a campanha das Diretas Já (1984), “a emenda não passa”, a eleição indireta, Tancredo contra  Maluf. “Enfim, é uma história que vai terminar com a Constituinte de 1988”.

Juca exibiu, então, uma montagem com quatro fotografias, todas presentes no livro da F4. A do alto à esquerda era um tocante registro do 1º de Maio de 1980, cujo autor é João Bittar (1951-2011) — “O primeiro de maio foi comemorado com muita força, muita presença de pais, mães, crianças, as famílias foram”. Ao lado uma foto de Nair Benedicto que enquadra trabalhadores marchando, tendo à frente uma grande faixa com os dizeres “Operário unido jamais será vencido”.

As duas imagens da parte inferior, de autoria de Edu Simões, registram uma famosa marcha feminina, que teve Marisa Leticia Lula da Silva (1950-2017) como uma das principais protagonistas: “Houve uma passeata muito forte das mulheres, onde a Marisa era uma das lideranças”, pontuou Juca. Uma das imagens mostra um inusitado cordão de mulheres da Polícia Militar, caminhando à frente da passeata. (Mais adiante, ele ainda projetaria uma terceira e marcante foto dessa marcha, que traz no centro uma mulher de lenço na cabeça, carregando uma criança no colo e ladeada por três meninos, provavelmente filhos dela.)

A imagem seguinte mostrada por ele é conhecida e foi bastante publicada, tanto no Brasil como no exterior, tendo Lula em primeiro plano: “Essa é a primeira assembleia feita fora do Sindicato dos Metalúrgicos. O espaço ficou tão pequeno e o movimento ficou tão grande que eles passaram para o estádio de Vila Euclides. Essa primeira assembleia ainda não tinha equipamento de som, o Lula está falando tudo na garganta, no gogó”, contou Juca. Depois ele exibiu outras fotos históricas: o voto da assembleia favorável à greve e uma outra, de Ricardo Malta, que capta o ameaçador sobrevoo de um helicóptero do II Exército. “É uma foto importante, essa assembleia embaixo lotada e o helicóptero do Exército voando em cima para causar medo nos metalúrgicos”.

Por fim, ele exibiu no telão uma fotografia do “famoso show de [1º de] maio para arrecadar grana para o fundo de greve”, que Fernando Ferreira já havia citado. Na imagem aparecem os músicos Jards Macalé, Fagner e Gonzaguinha (1945-1991), ao lado de Devanir Ribeiro, do próprio Lula e de Jacó Bittar (1940-2022), líder sindical petroleiro que depois se tornaria prefeito de Campinas.   

Lia Ribeiro Dias, que falou em seguida, fez questão de destacar sua felicidade por participar daquele momento de rememorações no SJSP. “Estou aqui em nome da Associação Brasileira de Imprensa, do qual eu sou diretora, e quero parabenizar a iniciativa, parabenizar os companheiros fotógrafos e fotógrafas, e quero dizer ao John da alegria de ver esse trabalho, a importância de registrar a história do fotojornalismo. Porque é muito importante preservar a memória histórica do país e, principalmente, para nós, jornalistas, registrar a história do país através do nosso ofício, do nosso trabalho”, disse.

Lia Ribeiro Dias. Foto: Cadu Bazilevski

O fotojornalismo, destacou ela, “conta muito mais do que o texto”, pelo impacto que tem. “Acompanhei de perto as greves, cobri, como jornalista, uma parte importante disso, então é com muita alegria que eu estou aqui ouvindo o seu relato, reconhecendo e, através da apresentação das fotos e da exposição dos companheiros, revendo aqueles momentos que foram muito intensos e muito emocionantes”, disse Lia dirigindo-se a French.

Numa intervenção posterior, a representante da ABI pediu ao historiador que  falasse mais a respeito do papel do SJSP na greve, porque, na avaliação dela, o sindicato, liderado por seu presidente David de Moraes, “foi o articulador dos demais sindicatos não operários no apoio à greve do ABC, foi o porta-voz dos sindicatos de ‘classe média’, dos arquitetos, dos advogados etc.”, tanto que ele era sempre chamado a falar. David faleceu recentemente, recordou Lia. “Na homenagem que fizemos aqui a ele, Djalma Bom esteve presente, falou em nome dos metalúrgicos e lembrou a participação dele e como foi importante no apoio ao movimento grevista nesses anos de 1978, 1979”, completou.

Lia relatou com mais detalhes a atuação de Marisa Leticia na marcha das mulheres, já mencionada por Juca Martins. “Ela teve um insight, porque estavam as mulheres lá para tentar a volta das negociações, porque estavam [havia] 40 dias de greve, com a negociação parada com os empresários. As esposas, namoradas, saíram em passeata. Só que estavam ali na igreja, e estava uma coronel [da PM], que estava querendo que a passeata fosse para trás da igreja, onde não tinha ninguém. Marisa teve um insight legal, ela falou ‘Não, ninguém vai sair aqui por trás, vamos sair para a Marechal [Deodoro, importante via central de São Bernardo do Campo], para as ruas que têm público, que têm pessoas que podem entender a nossa mobilização e apoiar’. Então, ela teve um papel muito importante de liderança”, recordou. Salientou o papel das mulheres, as esposas e namoradas que apoiavam a luta dos trabalhadores apesar das dificuldades enfrentadas em casa. “Para isso foi criado o Fundo de Greve. Se a gente for falar isso, fica dias e dias lembrando essa história que transformou realmente o país”. 

O depoimento seguinte, carregado de vibração e emoção, foi da jornalista Ana Valim, ex-diretora do SJSP, que falou de sua própria atuação como repórter da Folha de São Bernardo na cobertura das greves. “É uma alegria enorme estar aqui com muita gente que a gente conheceu e que conviveu há tantos anos e que cada coisa que vai passando vai, o coração vai… O Fernandinho chorou quase, não é, Fernandinho? Porque realmente emociona a gente”, disse Ana, para quem a fotografia tem um papel fundamental na construção da memória histórica de um país.

“É uma alegria enorme esse registro porque, dizia Rubem Alves, a memória é subversiva. Ela é subversiva porque pode ser ressignificada. Quando o Juca falava, quando o Fernandinho falava e quando cada um de vocês falava, a gente pensava assim: a gente tem futuro porque a gente tem passado, e o nosso passado está registrado. E vim falar também um pouquinho porque tem uma pessoa aqui que é responsável pela minha trajetória, pelo meu deslumbre pelo jornalismo, que é a Vilma [Amaro]. A Vilma é minha guru. E ela foi minha guru quando eu era foca na Folha de São Bernardo”.

Nos anos 1980, disse, “começou todo um trabalho com a Folha de São Bernardo, e a Folha de São Bernardo era um pouco diferenciada do Diário do Grande ABC, que era um jornal comercial, não que o outro não fosse, mas o outro era misto”. Tito Costa (MDB), então prefeito de São Bernardo, atuante “na luta contra a ditadura e pela democracia”, deu carta branca para Vilma, “que tinha vindo do exílio”, e formou-se uma equipe na Folha de São Bernardo. “Tive o prazer, o privilégio de participar desse laboratório, de saber o que era um jornalismo profissional, social, político, e que, além das greves, envolvia toda a questão dos movimentos populares que estavam fervendo, porque São Paulo estava na frente já, mas aí veio o ABC atrás com os seus movimentos populares, com os seus movimentos de defesa dos favelados, com as comunidades eclesiais de base. Naquela foto que tem a missa do 1º de maio de 1980, eu cobri a parte da igreja”, explicou.

“Estava tentando chegar [à igreja], porque eu ficava grudada em tudo que o D. Cláudio [Hummes] falava, para também tentar trazer para esse movimento o pessoal da igreja. E aí, quando eu estava subindo, começou aquela loucura e bomba, e bomba, e fui atingida. A solidariedade daquelas pessoas que estavam ali — eu fui carregada, ajudada, e eles estavam apanhando [da PM], e me carregaram até a Folha de São Bernardo, sangrando, nós correndo pela Marechal”, narrou.

“E eu perdi, gente, eu perdi a passeata. Chorei de ódio, porque eu perdi aquela passeata lindíssima das mulheres até o Paço Municipal. Então, lembrando o Nivaldo Almeida, o Cláudio Rosa, que eram os nossos fotógrafos, e agradecendo toda essa história que a gente construiu e que a gente continua construindo, porque a utopia nos move, está sempre lá, como diz o Galeano — ela está lá na frente, ela não morre”.  

Último a falar entre os convidados, Jorge Araújo evocou sua longa militância como repórter-fotográfico. “Bem, gente, passou um filme na minha cabeça aqui, cinquenta anos de fotojornalismo, vi esses meninos de cabelos pretos, todos eles”, brincou referindo-se aos colegas presentes. “Testemunha ocular de toda essa história desse país, com documentos, não são registros, são documentos históricos que a gente, cada clique, você para uma história, e paramos muita história nesse país”, frisou.

Jorge Araújo. Foto: Cadu Bazilevski

Ele lembrou que trabalhou por décadas na Folha de São Paulo e no Estadão, “que torciam o nariz exatamente para esses movimentos no começo”, e destacou o fato já apontado por French de que o Diário do Grande ABC, embora fosse um jornal comercial, “botou a cara”, não hesitou em “mostrar a cara do Brasil”. “E a gente ia exatamente nesse movimento, nessas greves, nessas incansáveis madrugadas de piquetes”, “os jornalões não queriam mostrar isso, mas a gente estava lá mostrando”.

Contou ter feito a cobertura, na cidade do Rio de Janeiro, de velórios de ditadores, nos quais aparecia, sempre às 22 horas, “depois que todos os jornais fechavam” as respectivas edições, o magnata Roberto Marinho (1904-2003), dono do Grupo Globo. “O doutor Roberto ia exatamente às 10 horas da noite. A gente ficava, porque não sabia quem chegaria lá”. O último deles foi o general João Baptista Figueiredo (1918-1999), a quem o poderoso empresário também fez questão de prestar homenagem. “Aí o doutor Roberto aparecia, ali, tranquilo, naquela penumbra, rezando, e ia embora”.

Jorge citou outros episódios de sua trajetória profissional, como a dramática cobertura da internação de Tancredo Neves (1910-1985), em particular um incidente protagonizado pelo jornalista Audálio Dantas (1929-2018), ex-presidente do SJSP (“Tem uma foto maravilhosa do Audálio tentando entrar como deputado federal no Hospital de Base de Brasília”), e viagens para São João del Rey (MG) em dupla com o jornalista Ricardo Kotscho. “Então sou um cara muito feliz, porque em todos esses grandes momentos da história desse país eu estava presente”, disse, citando como exemplo o momento em que Lula recebeu pela primeira vez a faixa de presidente da República.

“Enfim, toda essa trajetória política desse país, não só no campo político mas social também, todas as greves, todos os movimentos sociais, de estudantes. Sou muito feliz de ter registrado isso como fotojornalista, e isso deve estar parado em algum lugar nos arquivos, que um dia, como o John está fazendo aqui, alguém vai levantar para contar, cada um conta um pouco desse fragmento, dessa história”.

Homenageou, então, “essas pessoas aqui [no auditório] que construíram essas imagens”, exemplificando com a figura do repórter-fotográfico Roberto Parizotti, ou “Sapão”, diretor do SJSP, “que é um cara que levantava cedo para contar a história do ABC, e essas imagens têm que ser mostradas, não podem ficar guardadas”. A seu ver, Parizotti “deve ter um material incrível”, e portanto precisa publicar esse material em livro ou de algum outro modo: “Então, eu estou denunciando que você tem isso, é uma denúncia”, disse em tom de gozação.

Depois, referiu-se a duas repórteres-fotográficas presentes, que com a amiga e também fotojornalista Mônica Zaratini e vários outros colegas, fundaram o grupo “Fotógrafas e Fotógrafos pela Democracia”, já citado no início da atividade: “Essa minha tribo que está aqui, Luludi [Melo], Márcia Zut, essas pessoas eram meninas, como eram os meninos que contaram aquela história no jornal do ABC. Eram jovens, e contamos um pedacinho, um fragmento da história desse país, com imagens, com muita ética e dignidade”, encerrou.  

Jan Rocha. Foto: Cadu Bazilevski

Coube à renomada colega Jan Rocha, que durante o período ditatorial trabalhou como correspondente da BBC no Brasil, a primeira intervenção do público. “Eu fiquei emocionada, realmente, porque eu estava lá, em todos aqueles episódios que vocês mostraram, vocês fotógrafos”, iniciou. “Foi uma coisa realmente emocionante, me lembrava de tantos incidentes que aconteceram, por exemplo, naquelas assembleias na Vila Euclides, eu estava lá também, mas lembro sempre de uma pessoa que tinha uma pintura de Lula, como se fosse um ícone, que ele levantava assim e ficava horas com aquela pintura levantada, como se fosse uma coisa religiosa”.

Todos os dias, durante a greve, um grupo de correspondentes deslocava-se para São Bernardo do Campo. “Quem tinha um carro levava os outros. Eu lembro, chegando lá, lá estava o Romeu Tuma, do DOPS, e ele me reconheceu de outros protestos, então me cumprimentava: ‘Como vai a senhora? A senhora está por aqui?’. Como se não fosse meu dever estar lá. E logo depois a gente estava correndo da Polícia, das bombas, e eu lembro que tinha um colega canadense que teve a má ideia de entrar em uma loja, mas logo depois o dono da loja fechou a cortina e ele ficou preso lá dentro e não conseguiu cobrir nada”.

Jan Rocha observou que a Igreja desempenhou um papel importante nas greves, “porque fizeram campanhas de solidariedade, coletavam comida, mandavam para lá”, e a igreja em Santo André virou um centro de oposição. “Quando o Santo Dias, metalúrgico de São Paulo, foi morto, em novembro de 1979, o caixão dele ficou na igreja de Consolação. E depois, os companheiros dele levaram o caixão através das ruas, no centro de São Paulo, até a Catedral da Sé. Tinha um grupo de padres seguindo o caixão, depois uma multidão de gente gritando, ‘abaixo a Ditadura, abaixo a Ditadura’. Chegamos lá na Catedral da Sé e começaram a cantar Caminhando, de Geraldo Vandré”.

São momentos “que a gente nunca esquece, porque são tão emocionantes, tão profundos”, acrescentou ela. “E posso dizer da felicidade de ter estado lá em todos esses momentos. Quero agradecer aos fotógrafos que trouxeram as fotos. Porque o trabalho deles nos lembra muito mais do que as palavras. ‘Como é que estava? Como é que foi?’ Como é que houve aquela emoção coletiva durante as greves? Então, eu me sinto privilegiada de ter estado lá cobrindo, mandando notícias para a BBC e para fora”.

Vilma Amaro, uma das organizadoras da atividade, também pediu para se manifestar. “Às vezes não valorizamos muito a imagem. Então fizemos esse esforço através do John de valorizar os fotógrafos, o trabalho que eles fazem, muito importante para a história do país”, disse, antes de falar sobre a Folha de São Bernardo, “que era o jornal tradicional da cidade”, mas passou a cobrir as lutas sociais e políticas da região, e teve em Ana Valim sua “grande repórter”. Vilma explicou que se inspirava no jornal Última Hora, “que explorava justamente a imagem, a fotografia, a gente sempre dava na primeira página as grandes fotos das greves”.

A sede do jornal era ao lado da Igreja Matriz, um dos principais locais da movimentação grevista. “Nós passamos quarenta dias debaixo de bomba, e com os cachorros da Polícia Militar. Toda vez que eu vinha para trabalhar, tinha que pedir licença à Polícia”, lembrou ela, que também destacou a figura de Tito Costa. “Ele escondia até metalúrgico no banheiro. Quando a Polícia chegava, perguntava: ‘Vocês têm ordem judicial? Não? Então aqui não vai entrar, aqui não tem metalúrgico’. Estava escondido no banheiro”. De acordo com Vilma, Tito era amigo do delegado seccional de Polícia, e orientava a jornalista a comparecer à delegacia para libertar operários “piqueteiros”, porque se eles fossem levados ao DOPS seriam enquadrados na Lei de Segurança Nacional. “E muitos, realmente, a gente acabou soltando”. O prefeito franqueou o Estádio de Vila Euclides para os metalúrgicos, relatou ela, “e lá virou o centro político do país, começou com uma reivindicação econômica, foi evoluindo para um centro político”.

Foto: Cadu Bazilevski

Ela também mencionou uma reportagem, depois reproduzida no jornal Em Tempo, intitulada “O dia em que a imprensa invadiu a Volks”. Vilma e diversos outros jornalistas, entre os quais correspondentes estrangeiros, chegaram à Volkswagen durante a greve, para verificar se a fábrica estava realmente paralisada. Inicialmente a empresa não permitiu que entrassem. Mas, depois de uma negociação com o pessoal da assessoria de imprensa da Volks, os repórteres conseguiram entrar. “Vimos que a fábrica realmente estava parada, e quem estava lá estava dormindo — até saiu uma foto na Folha com um cara dormindo em cima de uma máquina. Só que a TV Globo falou que 95% da fábrica estava trabalhando. Quando todo mundo viu a fábrica parada”.

Por fim, pediu a palavra Girrana Rodrigues, diretora de Ação Sindical do SJSP, para um breve comentário. “Eu sou de 1996, estou emocionada até agora com a fala de vocês, porque eu não estava lá, mas a memória é coletiva. Eu sou são-bernardense, meu avô foi metalúrgico”, disse. “Eu me emociono sempre quando eu ando na Marechal, quando eu vou na Matriz, quando eu piso no Sindicato [dos Metalúrgicos]. Anos atrás, teve uma exposição na nossa Pinacoteca, em São Bernardo, que se chamava ‘Filhos e Netos do Subúrbio Operário’, porque nós somos filhos e netos dessa categoria que lutou. Então, para se entender, a gente precisa olhar para trás, entender o que foi o ABC, entender de onde a gente vem”, afirmou.

Girrana Rodrigues. Foto: Cadu Bazilevski

Encerrado o evento no auditório, ficou a certeza de que valeu a pena reunir tantos protagonistas e tantas testemunhas daquelas greves arrebatadoras que ajudaram a mudar o país, a derrubar a Ditadura Militar, e a abrir caminho ao surgimento de um novo partido de massas de esquerda, o PT; de uma nova liderança nacional, Lula; e — vinte e quatro anos depois — do primeiro presidente da República de origem operária.

French e sua esposa retornaram aos EUA. Dias depois, eles encaminharam uma simpática mensagem ao presidente do SJSP, Thiago Tanji, e ao secretário de Formação Sindical e Profissional, Pedro Pomar. “Foi uma experiência inesquecível, no dia 6 de maio, a de compartilhar aspectos do nosso projeto no auditório histórico do sindicato com o nome de Vladimir Herzog. A iniciativa e generosidade de Vilma Amaro, da Regional do ABC, e a disposição acolhedora de vocês produziu uma mesa com fotógrafos e jornalistas veteranos que cobriram os acontecimentos no ABC paulista durante luta aguerrida do final dos anos 70”, disseram.  

“Foi um evento marcado por companheirismo que nos ajudou na compreensão daqueles eventos longínquos, mas ainda hoje relevantes. Uma oportunidade ímpar de conhecer o pessoal do sindicato, e alguns dos seus membros históricos, e iniciar assim um relacionamento que devemos aprofundar daqui para a frente”, completaram, informando que deverão retornar ao Brasil em dezembro próximo.

Veja como foi o evento:

Assista ao evento na íntegra:

Abaixo algumas fotos apresentadas durante o evento:

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