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Kucinski: “Fiquei fascinado pelo jornalismo”

Kucinski: “Fiquei fascinado pelo jornalismo. Vesti a camisa e fui em frente”

O jornalista Bernardo Kucisnki, 81 de idade e mais de 50 de jornalismo, ganhador do Prêmio Herzog Especial 2018. Fotos: André Freire/SJSPGraduado em Física há 50 anos, ele dedicou a vida ao jornalismo como repórter e correspondente, e como professor universitário uspiano com vasta produção acadêmica sobre a profissão.

Ao completar 81 anos, o jornalista Bernardo Kucinski foi homenageado nesta 40ª edição do Prêmio Vladimir Herzog pela atenção aos direitos humanos durante sua trajetória. No currículo, veículos como os britânicos The Guardian e BBC, mídias tradicionais como a Veja, e jornais alternativos de resistência à ditadura como o extinto Opinião.

É co-autor, ao lado de Ítalo Tronca, de Pau de arara: a violência militar no Brasil (1974), primeiro livro a denunciar internacionalmente as torturas praticadas durante o regime militar (baixe gratuitamente a versão digital). Foi ainda assessor especial da comunicação do governo Lula.

Na entrevista concedida ao jornal Unidade, Kucinski compartilha suas perspectivas do futuro da profissão, os desafios do jornalista na ditadura de 64 e na atualidade, a cobertura midiática do golpe à democracia e as relações do novo governo com a imprensa, entre outros temas da profissão.

Como foi seu caminho da Física para o jornalismo?

Fiz Física muito tarde, tinha vários anos a mais que outros estudantes. A Física era uma profissão para jovens gênios, e eu não era nem gênio nem jovem. Ao mesmo tempo, tinha um talento, uma vocação para o jornalismo e minha entrada se deu na própria universidade, nos anos 1960, quando o grêmio estudantil lançou o Amanhã, primeiro jornal alternativo de combate à ditadura. O Raimundo Pereira, que era o editor, tinha sido meu colega na Física e me convidou para colaborar com o jornal. Depois fui para as revistas técnicas da Abril e em seguida para a Veja. Foi numa época em que o jornalismo floresceu. Numa escala mundial, também era uma época de ouro do jornalismo, dos grandes jornalistas que cobriam as guerras de libertação da África, a guerra do Vietnã, e nos espelhávamos neles. Fiquei fascinado pelo jornalismo. Vesti a camisa e fui em frente.

Como era lidar com as perseguições e o dia a dia de fazer jornalismo sob a repressão?

Passados 50 anos, as pessoas têm uma visão muito esquemática do que foi a regime, mas a ditadura brasileira era muito contraditória porque não queria se assumir e tentava um controle pontual, por intimidação. Havia um amplo espaço para nós atuarmos. Escrevíamos, publicávamos e tomávamos um pouco de cuidado com alguns assuntos. Quando se chegava às denúncias de tortura, aí era preciso tomar muito cuidado. Só era possível fazer um tratamento muito camuflado, sofisticado, às vezes emblemático, mas dava para fazer.

Quando o Médici assumiu, disse que não iria tolerar torturas em seu governo. Pegamos gancho nessa frase e criamos o dossiê sobre as torturas, até que veio a reação e tivemos que nos espalhar. Foi aí que começou meu exílio em Londres, mas antes de ir, surgiu o livro “Pau de arara: a violência militar no Brasil”. Quem teve a ideia foi o jornalista Luiz Merlino. Fizemos o livro na clandestinidade, levamos para Londres para publicar o que foi o primeiro livro denunciando as torturas no Brasil. Foi o Merlino quem, de fato, pediu que nós fizéssemos o livro e ele se encarregou de publicar na França.

Nesse período do seu exílio, como foi sua dedicação ao jornalismo?

Quando fui, o Vladimir Herzog me deu uma cartinha de representação para levar à BBC, pois tinha muitos brasileiros lá e era um ponto de apoio de jornalistas que tinham se exilado. Com essa carta, de fato, logo consegui um “bico” na BBC de Londres com o Vamberto Morais, que era chefe do serviço brasileiro na emissora. Depois de cerca de um ano consegui um trabalho mais efetivo, mas eu já mandava matérias para o Brasil, para o Opinião. Eu tinha encarnado o jornalismo, entrevistava personalidades, fiz algumas entrevistas para as “Amarelinhas” da Veja, fui cobrir a guerra na Irlanda do Norte. O primeiro ano foi mais difícil, mas depois já tinha mais trabalho do que eu podia dar conta. Comecei a escrever para uma newsletter bem engajada sobre a América Latina produzida pelos jornalistas do The Guardian e também do Financial Times. Era bem o momento em que os países da América Latina estavam sob ditadura, então, essa newsletter tinha informações quentes e, quando voltei ao Brasil, me tornei correspondente deles também. Daí, não parei mais.

Foi no retorno ao Brasil que se consolida seu trabalho com as mídias alternativas?

Em Londres, encontrei o Fernando Gasparian, que estava absolutamente transtornado com a morte do Rubens Paiva e queria fazer um jornal de oposição à ditadura no Brasil, e indiquei o Raimundo Pereira como editor. Foi assim que nasceu o Opinião.  O Gasparian é quem queria combater a ditadura com um jornal e bancou o Opinião.

Depois houve rachas e surgiu o Movimento, que era um jornal praticamente sob a égide do PCdoB. Participei de todos eles, mas também nunca parei de trabalhar para a imprensa mais convencional. Antes de voltar ao Brasil, também tinha sido contatado pela Gazeta Mercantil e me contrataram como correspondente já lá em Londres. Fui ainda correspondente do The Guardian por vários anos, escrevia para a revista Euromoney, trabalhava muito e fazia muitas coisas ao mesmo tempo. A imprensa alternativa não pagava, mas minha correspondência para o exterior garantia um dinheirinho e assim fui me virando.

E como começou seu trabalho acadêmico como professor?

'Estou convicto de que tudo o que fizemos até agora não tem nada a ver com o que será feito no futuro'Um dia em vim ao Sindicato dos Jornalistas e tinha quadro de aviso divulgando que a Escola de Comunicação e Artes da USP estava fazendo uma seleção de professores. Não era concurso público naquela época, mas era uma banca seletiva. Decidi ir porque nesse período estava sem emprego nenhum. Passei em segundo lugar, logo me chamaram e foi assim que começou porque eu não tinha mais onde trabalhar aqui e fui ser professor, embora continuasse escrevendo para o exterior. Comecei uma carreira de professor bastante forte também.

Quando cheguei na USP, o professor fazia o que queria, o que era ótimo. A universidade é o único lugar do mundo onde você faz o que quer e é intocável num certo sentido, tem uma autonomia, cada um criava a matéria que queria dar por que o que você vai ensinar de jornalismo? É algo muito aleatório e criei a disciplina de jornalismo econômico, que não existia no Brasil até então, e a de jornalismo internacional. Foi um período muito intenso em que também comecei a dirigir o jornal da ECA.

Quais os desafios do jornalista hoje nesse conflito entre a velocidade exigida pela internet, a apuração necessária e as fake news que se multiplicam?

Desde os primeiros indícios dessa revolução digital, já era da opinião de que isso era terremoto, de que não era apenas um novo meio, mas algo muito mais profundo. Hoje estou convicto de que tudo o que fizemos até agora não tem nada a ver com o que será feito no futuro. É como se tivesse uma ruptura, como uma era geológica diferente. Por exemplo, um dos alicerces do nosso jornalismo é a periodicidade e isso não existe mais.

Outra característica era que a notícia era uma mercadoria que podia ser vendida, que tinha um valor de mercado que sustentava a profissão. Hoje não é mais uma mercadoria porque você manda informação para alguém que a consome mas, ao mesmo tempo, aperta um botão e envia para mil pessoas. O jornalismo tinha uma espécie de monopólio da mediação e isso não existe mais. É um outro mundo sobre o qual não sei o que dizer porque acho que ele ainda está em formação. Só sei que não tem nada a ver com o jornalismo da nossa época. Mesmo esses jornais, que tiveram algum sucesso ao se tornar digitais, o papel deles na sociedade não tem nada a ver com o que tinha antes.

Também estou convencido de que todos os jornais impressos vão desaparecer porque eles não têm nenhum sentido na era atual. Das revistas, vão subsistir algumas específicas e até alguns jornais específicos, mas por conta dessa especificidade.

Quanto aos demais, não tem sentido você plantar uma floresta de eucalipto, esperar crescer 10 anos, produzir aquelas bobinas gigantescas de papel, levar até a Marginal Tietê para uma rotativa gigantesca produzir um jornal que vai para tua casa com notícia que já é velha. Isso não tem sentido e todos esses jornais vão acabar. Acho que hoje já não têm mais leitores que compram o jornal. Quem recebe o jornal impresso são os compradores institucionais, como bancos, deputados, vereadores, prefeitos e outros políticos que assinam. 

Como você avalia a cobertura da mídia antes e depois do golpe à democracia?

O jornalismo brasileiro atual sofreu uma degradação específica, uma transformação ética de um jornalismo de serviço público para outro comprometido com interesses, com grupos, com projeto político anti social, inclusive. O jornalismo brasileiro tem muito a ver com o ponto a que chegamos hoje. Se comparar o nosso com o norte americano e o inglês, você vê como o jornalismo brasileiro é subdesenvolvido nesse sentido, é muito comprometido.

Como é que o senhor acha que vai ser a relação dessa mídia com a Presidência da República nos próximos anos?

É uma questão muito complicada. É um pouco cedo para saber, mas ele quer acabar com a EBC, quer atropelar a imprensa. Aí vai descobrir que a EBC é um instrumento importante do governo, ainda mais se não tiver uma imprensa muito a favor dele. Ele vai ser aconselhado a não acabar com a EBC, mas vai acabar com a parte pública da empresa e ficar só com a parte estatal. Não sei se a grande imprensa vai insistir num acompanhamento crítico do Bolsonaro porque essa mídia é partícipe desse projeto, se tornou cúmplice dele. Ela foi tão atuante à favor desse governo que ela não pode permitir que ele fracasse, entende? Vai insistir nele até o fim, vai continuar dizendo que a culpa de toda crise é do PT, como diz até hoje. Eles já estão há dois anos no poder, a economia continua no lodo e a culpa é do PT. Não tenho a menor fé, infelizmente.          

O fim da obrigatoriedade do diploma de jornalismo afetou ou não a profissão?

Tenho impressão que isso se tornou meio irrelevante. A decadência do jornalismo brasileiro derrubou tudo isso. A caminho do Sindicato encontrei um ex-aluno que está dando aulas de jornalismo no Tocantins e perguntei a ele se ainda tinha gente interessada em aprender. Ele disse que sim, que as universidades federais têm isso, e os alunos dele são indígenas, camponeses, jovens de famílias que recebem o Bolsa Família, que têm uma sede de aprender impressionante. Há essas pessoas e essas ilhas fazendo coisas pelo Brasil todo.

O que espero é que essa obrigatoriedade não tenha impedido pessoas com talento de serem jornalistas, como foi o meu caso que não tinha diploma de jornalismo. Não fui pela obrigatoriedade do diploma porque me espelhava um pouco na experiência de países avançados onde não se exige isso, como na Inglaterra e nos Estados Unidos onde se considera desejável que a pessoa tenha curso superior e uma formação razoável, mas não que seja uma exigência para exercício da profissão. Isso corta as experiências de quem fez outros cursos, até porque a grade do curso de jornalismo é muito discutível do ponto de vista formativo. Há cursos que fazem a pessoa ser uma cabeça pensante que não melhores que jornalismo, como física e história, porque têm uma metodologia bem definidas que fazem você lidar com categorias da área com certa pertinência, enquanto no jornalismo é tudo muito aleatório.

O que o senhor diria para o jornalista que está começando na profissão?

A primeira coisa que eu diria, se fosse meu neto ou meu filho, era para fazer outra faculdade, um outro curso. Um curso de economia, história, antropologia, artes. Não recomendaria o jornalismo. Se ainda assim ele insistisse, então recomendaria fazer os dois cursos ao mesmo tempo e que depois procurasse ir para o exterior passar um tempo vendo a imprensa de outros países. Dos meus ex-alunos, poucos ficaram no jornalismo e sempre em circunstâncias muito específicas. É uma profissão hoje hostil às pessoas, entende? O jovem que hoje vai trabalhar no jornalismo mesmo, nas grandes empresas de comunicação, depois de três anos vai estar totalmente estressado, como acontecia com meus alunos há 15 anos. Melhor nem começar. Sinto muito em dizer isso [risos].

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